Nos últimos dias, em que somos obrigados ao recolhimento e aconselhados ao distanciamento social, tenho notado algo que me parece ser uma mais-valia a manter para quando for que esta crise acabar. É ela a identificação de uma causa comum. Não me lembro de alguma vez ter vivenciado, na minha vida – que apesar de não ter chegado ainda aos 20 anos, já viveu algumas coisas – uma situação em que toda a população é obrigada a refletir sobre a mesma coisa, seja em que circustância for. Olhando, no mínimo, para o plano nacional, creio que salvo raras excepções, toda a população tem as mesmas palavras na cabeça: coronavírus, quarentena, isolamento.

E nesta crise, têm-se destacado 2 tipos de pessoas. Primeiro, a pessoa que não costuma estar em casa, e é agora obrigada a descobrir todos os recantos do seu humilde lar, desde dos azulejos da casa-de-banho a que nunca prestou atenção por ter demasiada pressa, até às pessoas que partilham casa consigo. Tem circulado uma anedota muito realista, sobre um homem que graças a esta situação é obrigado a conhecer a mulher com quem vive há uns anos, notando que, no fim de contas, a senhora até parece simpática. Tem piada porque é verdade, mas também porque reflete uma sociedade muito triste, virada para si e para o seu umbigo. Este tipo de pessoa pode então ter dois tipos de reação em relação à situação infortúnia em que se encontra. Pode, como se tem visto, e como se diz na gíria, “passar mal”, desesperar e suspirar pelo mundo lá fora à sua espera. Mas pode também deixar-se surpreender pelo mundo que encontrar em casa, perceber as maravilhas de algum recatamento, da paz que encontra quando vê um bom filme com calma, ou dois, ou três. Pode permitir-se relaxar, ganhar perspetiva sobre a vida que leva, e relativizar. O mundo lá fora pode esperar, que neste momento estou mais interessado em ler o meu livro.

O outro tipo de pessoas, no lado oposto, vive já esta situação há muito tempo. Há muito que percebeu a importância do estar, do conforto do lar que não serve só para abrigo em altura de catástrofe, mas que acima de tudo serve para um melhor auto-conhecimento e melhores práticas daquilo que são, realmente os nossos interesses. Eu, dentro daquilo que a minha humildade permite, gosto de me incluir neste segundo grupo. Não tenho medo de estar em casa, a ideia não me assusta nem aborrece. Gosto de estar em casa, dedicar tempo a algum pensamento e confrontamento interior. Face a uma catástrofe humanitária como sabemos que esta é, afastando todo o oportunismo ou maquiavelismo que me possa ser apontado, vejo o ficar em casa como mais uma oportunidade, sabendo que não é uma exclusiva novidade. Uma oportunidade para nos cultivarmos, seja através de livros, filmes, séries, boas conversas pelas famosas video-conferências, ou tudo o que mais possa aparecer.

A ideia de ficar sozinhos costuma ser pintada como um quadro trágico e misturada em aguarelas de solidão, mas não tem que ser assim. Estarmos sozinhos, confrontados com os nossos próprios pensamentos e ideias, é uma das bases mais importantes para o auto-conhecimento. Vou até mais longe: se de facto nos assusta este tempo em que temos de ficar sozinhos connosco mesmos, se calhar é de mais tempo sozinhos que precisamos. Quando esta pandemia se resolver – e há-de se resolver – será compreensível a histeria total e novo preenchimento das ruas. Mas se este tempo nos faz confusão, talvez deva ser a nossa prioridade perceber porque é que nos faz tanta confusão estar no nosso lugar de abrigo, antes de o abandonarmos mais uma vez.

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