Chegado o verão, inicia-se toda uma temporada de espetáculos de circo e artes de rua. Proliferam por todo país apresentações de espetáculos, algumas vezes apresentados em festivais ou ciclos de programação especializados nestas áreas, outras, em programações mais ou menos avulsas, promovidas ao abrigo das “animações de verão” das cidades.

Compreende-se, em parte, o contexto sazonal onde se tem investido mais nas áreas do circo e artes de rua. Portugal tem, de facto, um clima privilegiado para a fruição artística ao ar livre, no entanto, o circo não é uma arte exclusiva do espaço público nem as artes de rua são um conceito de verão. É fundamental ter isso em conta para pensar a sustentabilidade destas linguagens ao longo de todo o ano.

Hemingway disse uma vez: “O circo é a ópera dos olhos, no circo sonho de olhos abertos.” A componente acrobática destas artes leva-nos por vezes a ficar inebriados com a sua espetacularidade. Mas tal como na acrobacia, é preciso que os olhos de quem desenha as políticas públicas para a cultura estabeleçam um ponto fixo, de preferência no horizonte, para ancorar objetivos e medidas estruturais para o sustentável desenvolvimento destas áreas em Portugal.

Com o aumento bastante considerável na procura de obras nestes domínios artísticos, urge pensar numa resposta académica de nível superior, que possa formar profissionais com elevado grau de competência artística e técnica. Existem neste momento dois cursos de nível profissional: um já com muitos anos, o Chapitô, em Lisboa, outro, ainda muito recente, desenvolvido pela ACE – Escola de Artes, no seu polo de Famalicão. E ainda dois cursos de ensino não-formal: a Salto, na Maia, e o INAC, em Vila Nova de Famalicão. Quem queira continuar os seus estudos ao nível superior nestas áreas tem obrigatoriamente de sair do país.

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Quem de Portugal parte para prosseguir o seu percurso académico dificilmente encontra razões para regressar e aqui desenvolver o seu trabalho. E existem vários fatores para se fixarem em países como, por exemplo, a França ou a Bélgica: espaços de treino e criação devidamente preparados para estas linguagens; estruturas de coprodução e difusão direcionadas para o circo e as artes de rua; um sistema de proteção social que reconhece a intermitência no trabalho destes profissionais, amortecendo as quebras financeiras por falta de trabalho, ou ainda pelas consecutivas lesões físicas a que estes profissionais estão inevitavelmente expostos.

De forma a garantir a sua segurança e a dos seus colegas durante a performance, um artista de circo precisa de treinar diariamente e garantir uma condição física em tudo semelhante à de um atleta de alta competição. E tal como acontece com todos os atletas de alta competição, as lesões constantes fazem parte do caminho. Existe, portanto, em permanência, um risco físico, e consequentemente psicológico, associado às artes do circo. Aquele que se aventure a dedicar a sua vida profissional a uma área tão exigente como esta, irá certamente optar por fazê-lo ao abrigo de um Estado social que reconheça a sua condição de risco. Caso contrário, é sadismo.

Para fixarmos artistas e desenvolvermos seriamente o circo e as artes de rua, precisamos de estruturar urgentemente e de forma consertada estes quatro aspetos que me parecem basilares: garantir a programação destas disciplinas ao longo de todo o ano; uma formação académica de nível superior; uma rede de equipamentos preparados para a prática regular destas linguagens em segurança; e uma proteção social que reconheça os riscos inerentes a estas disciplinas e o estatuto de desgaste rápido destes profissionais.

O verão está aí. Os festivais também. E enquanto estivermos inebriados pela “ópera dos olhos”, reflitamos com profundidade sobre uma arte que se lança, sem rede, para um mortal encarpado diante dos nossos olhos.