Verão de 1971. Tenho 14 anos e pela primeira e única vez na vida a minha família passa férias numa pequena aldeia da costa alentejana onde tinham acabado de abrir umas simpáticas casas para alugar, mesmo em cima de praias ainda quase desertas: Porto Covo. Nesses dias lerei “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski, uma edição do recém-criado Círculo dos Leitores. As férias eram longas e recordo-as para situar o país de há 50 anos, sem qualquer nostalgia, mas com realismo.

Portugal vivia ainda a “Primavera marcelista”, pois a ilusão de que alguma coisa mudaria não se esfumara, mas eu não desconhecia o país pobre e atrasado que o Portugal de então. Um país que mesmo assim estava a mudar depressa – o liceu em que entrara, o Pedro Nunes, já deixara de ser apenas para elites e em breve teria de se desdobrar em dois turnos, os jornais noticiavam a inauguração da “maior doca seca do mundo” nos estaleiros da Lisnave em Almada e, verifico agora, 1971 foi um ano de rápido crescimento económico, mais de 10% (sim, mais de 10%, tal como em 1972). Havia mais dinheiro a circular pelo que começava a ganhar peso uma nova classe média, e isso notava-se.

Também isso contribuiria para que em breve o impasse do regime, incapaz de resolver o problema colonial, desembocasse no 25 de Abril.

Verão de 1996. 25 anos depois passo as férias perto de Lisboa, na mesma aldeia onde hoje vivo. Também me lembro do que li nesse ano: “Le Passé D’Une Illusion ; Essai Sur L’Idée Communiste au XX Siècle”, o fabuloso ensaio de François Furet sobre como gerações e gerações de intelectuais se deixaram iludir por uma ideologia que conduziu sempre ao totalitarismo. Havia optimismo nesses anos, pois o Muro de Berlim caíra em 1989, a ideia democrática e liberal parecia triunfar no mundo, e Portugal, há 10 anos membro da então Comunidade Europeia, conhecera uma década de ouro, com crescimento, abertura ao exterior, investimentos importantes (a AutoEuropa produzira os primeiros automóveis em 1995), havia até uma Expo98 no horizonte. Em breve dir-se-ia que “Portugal está na moda”.

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Politicamente terminara o ciclo do “cavaquismo” e chegara o suave Guterres. Depois de tantos anos de hegemonia do PSD (desde 1979 e da primeira AD que os sociais-democratas tinham estado sempre no governo até 1995), dificilmente se imaginaria que estávamos a entrar num ainda mais longo ciclo de hegemonia do PS. E de como algumas caras (ou apelidos) que me acompanharam nas notícias desse Verão ainda estão por aí.

António Costa, hoje primeiro-ministro, entrara para o governo de Guterres logo em 1995. Como secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, mas pouco tempo depois (1997) seria promovido a ministro. O pai de João Gomes Cravinho, João Cravinho, era ministro das Equipamento e Planeamento. O pai de Mariana Vieira da Silva, José António Vieira da Silva, entraria pouco depois para o Governo, em 1999, ainda como secretário de Estado, ou seja, na mesma altura em que também entraram Eduardo Cabrita e Augusto Santos Silva.

Mas se estes são os membros do actual executivo que já antes de 2015 tinham ocupado cargos governativos, vários passaram como assessores ou adjuntos por gabinetes ministeriais – é o caso de João Leão, Alexandra Leitão, Matos Fernandes, Graça Fonseca, Ana Mendes Godinho e Manuel Heitor. Ou seja, olhando para quem hoje se senta nas cadeiras do poder, o mínimo que podemos dizer é que há muito tempo, nalguns casos há mais de duas décadas, que circulam pelos corredores do poder, com curtos períodos de interregno.

Sendo que nesse Verão de 1996 havia mais dois protagonistas importantes que também por aí andam: o líder do PSD (e da oposição) era então um tal Marcelo Rebelo de Sousa e o seu secretário-geral dava pelo nome de Rui Rio. Tempos curiosos vistos a esta distância.

Verão de 2021. Passaram mais 25 anos, e há muito que nem sequer regresso à pequena aldeia de pescadores que há 50 anos Rui Veloso ainda não tinha descoberto, mais a sua misteriosa ilha do Pessegueiro. Mas não é nisso que agora penso. Penso antes nalguns indicadores que fui consultar – e me deixam um amargo de boca.

Em 1996, a meio desta viagem, a nossa riqueza por habitante correspondia a 81% da média da União Europeia a 27 (chegaria a ser 85%, no ano 2000); hoje caiu para 77%. Países que então estavam muito atrás de nós, ultrapassaram-nos: Malta, a República Checa, a Lituânia, a Estónia, a Eslovénia, no ano passado ficámos já par com a Polónia – sim, a pobre Polónia. Entretanto a dívida pública passou de 62,1% para 133,5% do PIB, o número idosos por cada 100 jovens quase duplicou (passou de 84 para 165) e o número de pensionistas cresceu 40%. Na Europa só a Itália apresenta um índice de envelhecimento pior do que o nosso. Em síntese: estamos mais endividados, mais velhos e comparativamente mais pobres. (E quem quiser conhecer melhor os números, encontra-os aqui e aqui)

Não julguem porém que me engano. Eu sei que o país não está igual ao que era há 25 anos, muito menos há 50 anos, mas nessas alturas tínhamos a sensação de ter obstáculos pela frente mas de estarmos a progredir – agora sentimos que perdemos terreno. Em 1996, por exemplo, as empresas portuguesas começavam a falar de se internacionalizar e a alguns grandes rostos que tinham emergido no pós-25 de Abril – Belmiro de Azevedo, Soares dos Santos, Américo Amorim – pareciam querer juntar-se outros que regressavam do exílio. Hoje esses rostos já desapareceram, os seus sucessores ainda não conquistaram a mesma autoridade, mesmo a recente formação de uma nova associação empresarial, sendo de aplaudir e uma lufada de ar fresco, é um sintoma de fraqueza – de fraqueza das velhas associações patronais, sinal também da menor capacidade dos seus protagonistas de se fazerem valer só por si.

Sabemos o que aconteceu entretanto à maioria das grandes empresas portuguesas, sabemos como hoje o seu comando já não está em mãos portuguesas e como isso – triste sina… – é até a nossa melhor garantia de que algumas terão melhor gestão. Tal como sabemos que o Estado português ganhou peso – eram 614 mil os funcionários das administrações públicas em 1996, já tinham subido para 699 mil em 2019… – e nenhum simplex eliminou as camadas de burocracia que atormentam a vida dos cidadãos.

Não caio mesmo assim na armadilha, em que vejo tantos caírem, de dizer que está tudo pior, mas noto o desânimo e, sobretudo, sinto que faliram duas expectativas fundamentais: a aproximação dos nossos níveis de vida aos da Europa mais desenvolvida, e estarmos a passar o testemunho a uma geração que, ao contrário das anteriores, não tem expectativas de viver melhor que a geração dos seus pais.

É isso suficiente para descrer da democracia? Não devia ser, mas há resultados inquietantes. Segundo um estudo da Gulbenkian, o número de portugueses que rejeita um líder autoritário tem vindo a diminuir e está em mínimos de sempre: 37%. Um outro estudo, este da Fundação Francisco Manuel dos Santos, aponta para um enfraquecimento da democracia durante a pandemia, havendo já 42% dos portugueses a acharem que seria “bom ou muito bom” terem o país governado por um líder forte que não se preocupasse com eleições ou com o Parlamento. Porventura ainda pior é a ideia de que o ideal seria um “governo de especialistas”, que recolhe o apoio de 68% dos nossos compatriotas.

Enquanto isto… o PS reuniu-se numa festa de família e celebrou-se a si próprio. Foi nas mais recentes jornadas parlamentares onde, mesmo descontando o tom de campanha eleitoral, o registo geral dos discursos foi do gongórico ao populista. Alguma coisa não bate certo.

Cá fora, e deixando de lado a pandemia, mais um PRR em que poucos fora dos corredores do poder acreditam, mais todos os indicadores que nos dizem que ficámos aquém do que os outros fizeram neste ano e meio para aguentar o país, multiplicam-se os “casos e casinhos” que vão degradando a confiança nas instituições porque mostram que, para quem exerce o poder, as instituições têm pouco valor.

Recordemos apenas algumas notícias das últimas semanas:

Podia continuar, houve mais casos de desrespeito pelas instituições, pela oposição, pelos cidadãos. Os que se sentes e se comportam como “novos donos disto tudo” julgam-se intocáveis pois as sondagens não os afligem e já só sonham com o dinheiro da bazuca. Um dia vão perceber que se enganaram: o dinheiro não é assim tanto, a fominha é muita, as bocas a alimentar são cada vez mais e tudo tem um fim.

Eu, por mim, só desejo que, mesmo embriagados com a girândola da propaganda que os faz rodar sem parar pelo país, sempre de anúncio em anúncio, não deixem de notar que o Estado da Nação se aproxima perigosamente do “estado a que isto chegou”. Se não acreditam, voltem a olhar para os dois estudos que já citei.