O assunto não abre telejornais, mas afigura-se como um dos temas mais importantes nestes tempos dominados por redes sociais: até que ponto o que as massas consideram politicamente correcto condiciona o que dizemos e o que pensamos? A questão ressurgiu recentemente a propósito de um episódio ocorrido com Tim Hunt, cientista prémio Nobel em 2001, que perante uma plateia de jornalistas tentou a gracinha e explicou o seu incómodo para com as mulheres nos laboratórios de investigação – para ele são uma distracção por se apaixonarem (ou por fazerem com que os homens se apaixonem por elas) e por lidarem de forma emocional com críticas profissionais. A gracinha correu mal. As suas revelações atravessaram o mundo e, como se esperava, o mundo entrou num alvoroço. A pressão mediática atingiu uma tal dimensão que o cientista se viu forçado a apresentar a sua demissão do cargo de Professor Honorário da University College of London, que a instituição aceitou sem pestanejar.
Entre a indignação e o choque, todos se questionaram como pode um homem tão inteligente ser tão idiota. A interrogação motivou inúmeros artigos de opinião no Reino Unido, nos EUA e até por cá. Mas não é essa a pergunta que importa. As declarações de Tim Hunt são obviamente uma idiotice e um reflexo de uma mentalidade retrógrada, mas constitui também um erro partir do pressuposto que a inteligência é um antídoto contra a idiotice, o vício, a imoralidade ou o preconceito. De resto, abundam por aí exemplos vivos disso mesmo, desde Strauss-Kahn a Sepp Blatter, já para não falar de Manuel Maria Carrilho.
Como tal, a pergunta que importa lançar a propósito deste caso é outra: tem o cientista Tim Hunt direito a ser um idiota? A minha resposta é que sim, tem esse direito e, por mais que se discorde das suas opiniões, deve defender-se o seu direito à idiotice. Até porque esta sua idiotice não tem qualquer interferência com o seu desempenho profissional. As críticas dirigidas a Hunt nada têm a ver com a sua conduta ou com algum acto discriminatório que tenha levado a cabo nos seus projectos de investigação (o que aliás seria ilegal). Apenas dizem respeito à sua experiência e opinião sobre homens e mulheres partilharem um mesmo espaço de trabalho. Ou seja, em bom português, toda a polémica gira à volta de um delito de opinião. Ora, podemos não partilhar das suas opiniões, mas até um chauvinista tem direitos e pode ser um bom cientista, como Tim Hunt foi reconhecido por ser. E isso importa mais do que a sua opinião sobre a igualdade de género nos laboratórios.
Este caso vale muito pelo exemplo que estabelece em termos de consequências: a destruição da carreira de um Nobel da Medicina por causa de uma opinião abre uma caixa de pandora de restrições às nossas liberdades. De um dia para o outro, um génio da ciência foi reduzido a monstro pelas redes sociais e rejeitado pelas organizações científicas. É inevitável perguntar, afinal, sobre que temas podemos falar livremente ou fazer humor sem ferir susceptibilidades? Até que ponto vale a pena arriscar uma carreira para afirmar uma ideia que contraria a norma? E quantas pessoas à nossa volta e nos nossos meios profissionais têm posições com as quais não nos identificamos e repudiamos – devem ser despedidas? É realmente impossível fixar o limite, pois qualquer assunto é potencialmente ofensivo para alguém. E assim sendo, ninguém no seu perfeito juízo se aventura a falar, por receio do policiamento da opinião e desta espécie de intimidação silenciosa.
Não me entendam mal, não acho que Tim Hunt mereça uma cruzada em sua defesa, nem é isso o que proponho. O meu ponto é bem mais simples: não me interessa Tim Hunt, mas o facto de o seu caso ser representativo dos perigos dos julgamentos populares das redes sociais e da intolerância ao que é politicamente incorrecto. É que, entre indignações colectivas perante opiniões que se desaprova, confunde-se muitas vezes o que é dito com o direito a dizê-lo. E esse erro é fatal. Numa sociedade livre, não se deve ter medo da discordância, da ofensa, de pensar pela própria cabeça. Infelizmente, esse medo existe, imposto pelo policiamento de redes sociais, a quem se atribuiu o poder de definir quem é besta e quem é bestial. Longe vão os tempos em que os inimigos da liberdade eram regimes com rosto e sotaque, a quilómetros de distância. Hoje, são apenas justiceiros silenciosos com um teclado e uma ligação à internet. Ora, goste-se ou não de Tim Hunt, é contra essa intimidação que o seu direito à idiotice deve ser defendido.