Inconseqüência, palavra resultante da junção dos prefixos latinos in e con e do termo sequentia, de origem idêntica, é hoje sinónimo de contradição, irresponsabilidade ou incoerência. O acento circunflexo e o trema (entretanto abolido) deu-lhos a nossa grafia.

Sentido à noção de inconseqüência damos nós diariamente, mediante escolhas colectivas alheias à mais básica noção de bom-senso, proporcionalidade ou pertinência. É o caso do célebre Decreto da Assembleia da República n.º 248/XIII, vulgo, Diploma de Alargamento do Direito de Preferência dos Arrendatários.

Recuemos, assim, aos inícios do passado Verão e evoquemos o funesto dia em que a companhia de seguros Fidelidade terá anunciado a sua intenção de vender vários imóveis seus a um fundo de investimento estadunidense chamado Apollo.

Nessa altura, certas fracções desses imóveis encontravam-se arrendadas, implicando a respectiva venda a legítima oposição da Fidelidade à renovação dos contratos de arrendamento em vigor.

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Ora, por motivos alheios à compreensão do comum mortal, estaria a seguradora convencida de que quem arrenda uma casa fá-lo de livre e espontânea vontade, comprometendo-se com o pagamento de uma renda por período previamente estabelecido e obrigando-se a abandonar o imóvel aquando do término desse mesmo período, salvo, naturalmente, mútua estipulação em contrário. Nada disso! A histeria e o sensacionalismo que o caso despertou levaram à urgentíssima necessidade de legislar no sentido de pôr fim a semelhante despautério. Seguiram-se as indignações costumeiras e, em Julho de 2018, a Assembleia da República aprovou o dito Alargamento do Direito de Preferência dos arrendatários, que lhes asseguraria a possibilidade de, em caso de venda do imóvel em bloco, exercerem o direito de preferência, não necessariamente na compra do prédio por inteiro (como até então acontecia), mas na compra da fracção arrendada, ainda que o imóvel não se constituísse em regime de propriedade horizontal.

Pouco há de mais triste que a inconseqüência de uma Administração que governa uma nação ao sabor do imediatismo mediático e pouquíssimo haverá de mais infeliz que as conseqüências desta lei para o já moribundo mercado de arrendamento urbano.

Além de inúteis, iniciativas como esta desencorajam o aluguer de longa duração, penalizam a reabilitação urbana, sobrecarregam os tribunais, arrasam a confiança dos investidores, castram a iniciativa privada e lesam indiscriminadamente os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, directa ou indirectamente.

A esse respeito, considerem-se os “interesses legalmente protegidos dos particulares” um conjunto de interesses e aspirações privadas legítimas cuja concretização, não sendo directamente oponível à Administração, é merecedora da sua protecção, reservando-se ao cidadão o direito de não ver o seu interesse, (ressalve-se) legítimo, lesado. Por outras palavras, o cidadão vê-se impedido de fazer valer o seu direito em tribunal, mas recebe da Administração uma garantia de que não será lesado, nomeadamente pela arbitrariedade do sistema legislativo, como aqui aconteceu.

É neste mesmo sentido que versam as duas primeiras alíneas do 266.º artigo da Constituição da República Portuguesa (CRP), obrigando a acção estadual à “prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” e subordinando os órgãos a uma actuação respeitadora dos “princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”. É o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

Afastado que está qualquer indício de boa-fé, justiça, imparcialidade ou proporcionalidade desta lei, analisemo-la, então, à luz do tão famoso direito de propriedade:

Artigo 62.º da CRP
(Direito de propriedade privada)
1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.

Não serão necessários grandes conhecimentos jurídicos para notar um claro desfasamento entre o objecto da nova lei e o conteúdo da disposição transcrita. Quem vende um prédio está pura e simplesmente transmitindo a sua propriedade mediante contrato de compra e venda, em pleno exercício do correspondente direito constitucional, que se vê agora boicotado, uma vez que o proprietário já não poderá legar a totalidade da sua propriedade, ficando prejudicado nas suas legítimas aspirações.

A nova lei constitui, por isso, um grave retrocesso face ao que estava em vigor, porquanto, caso se aplicasse o direito de preferência antigo ao objecto em venda (os imóveis da Fidelidade), vender aos inquilinos ou à Apollo seria indiferente. A Fidelidade, como qualquer outro proprietário, receberia o mesmo e não veria os seus interesses prejudicados.

Por esse motivo, o Alargamento do Direito de Preferência dos Arrendatários é uma violação ostensiva e fanfarrona do Direito de Propriedade e do Princípio do Respeito pelos Direitos e Interesses Legalmente Protegidos dos Particulares.

Opinião semelhante pareceu ter o gabinete jurídico do Palácio de Belém, a quem o diploma levantou “sérias dúvidas de constitucionalidade”. Nada que preocupasse o Presidente da República que, afinal, só envia diplomas para fiscalização preventiva de constitucionalidade “em casos óbvios”.

Esta questionável posição do Chefe de Estado foi primorosamente demonstrada pelo seu ainda mais questionável veto político do diploma, em 1 de Agosto de 2018.

Em mensagem publicada no sítio online da Presidência da República, Marcelo pede duas clarificações ao legislador, a saber: “A falta de indicação de critérios de avaliação para o exercício do direito de preferência, que existia em versão anterior do diploma” e “o facto de, tal como se encontra redigida, a preferência poder ser invocada não apenas pelos inquilinos para defenderem o seu direito à habitação, mas também por inquilinos com atividades de outra natureza, nomeadamente empresarial”.

Excelentes reparos, não fosse o Presidente haver-se esquecido de alguns detalhes meramente práticos. E se a transacção imobiliária implicar a alteração significativa ou mesmo a demolição da fracção recém-adquirida pelo locatário? E se o inquilino não lograr a compra do imóvel, a título de exemplo, por insucesso na obtenção de crédito bancário? E se a manifestação de interesse do inquilino inviabilizar a venda do senhorio, causando-lhe prejuízo? Esse prejuízo é indemnizável? E se, devido à intenção do inquilino, a venda do prédio não se cumprir e o inquilino, paralelamente, não conseguir comprar a “sua” fracção? E se o imóvel não puder ser constituído em propriedade horizontal? E, podendo, de quem parte essa iniciativa?

Evidentemente, “querendo proteger-se a situação dos presentes inquilinos”, poderá estar “a criar-se problemas a potenciais inquilinos, ou seja ao mercado de arrendamento no futuro”, porquanto os proprietários são destarte incentivados à afectação do imóvel a fins meramente turísticos, “para os poderem vender mais facilmente sem a desvalorização que uma acção de divisão de coisa comum em tribunal (…) pode acarretar”.

Pasmemo-nos ao confirmar que o autor destas declarações é o próprio Presidente da República, choquemo-nos ao constatar que bastou que os autores do diploma respondessem a essas duas clarificações, excluindo o arrendamento não-habitacional, para que Marcelo promulgasse o diploma, uma vez que a Assembleia da República tomou “plenamente em conta” os seus reparos.

Com um só gesto, o distinto catedrático alcança a proeza de exibir todas as formas de inconseqüência. Da irresponsabilidade à incoerência, passando pela ilação infundada, há acepções para todos os gostos.

Tenhamos sempre presente que nem o Estado, nem a Assembleia da República têm o direito de prejudicar os particulares nos termos em que o fizeram, nem o Presidente pode promulgar o que quer que seja sem acautelar devidamente interesse público, já que, como referiu, e bem, a segunda vítima deste devaneio será o próprio mercado de arrendamento, que, em virtude da instabilidade legislativa contemporânea, apresenta já claros sinais de retractação, desconsiderando-se outro direito fundamental: o Direito à Habitação, conforme descrito no número 66 da CRP.

A tutela dos interesses e direitos legalmente protegidos dos particulares não se esgota na protecção de A ou B. Tem implicações muito mais profundas, devendo ser encarado como pilar fundamental de qualquer democracia fundada nos Direitos Humanos.

Iniciativas parlamentares deste tipo representam tudo o que a Administração não deve e não pode fazer. Tome-se por exemplo a lei, também promulgado por Marcelo, que suspende temporariamente a denúncia de contratos de arrendamento habitacional de inquilinos maiores de 65 anos de idade residentes no locado há mais de 15 anos ou portadores de deficiência de igual ou superior a 60%. Pergunta-se: que acontece se o proprietário já houver celebrado contrato-promessa de compra e venda? E se o inquilino houver incumprido o pagamento da renda? Não deveria a Administração dar resposta a estes particulares? E não serão esses seus interesses dignos de tutela administrativa.

A Administração acha que não. Tanto é que a famosa moratória dos “despejos” chega ao ridículo de ter sido aprovada sem se saber sequer quantos contratos de arrendamento existem nestas condições.

Deve-se dizer que já se esperava iniciativas deste tipo vindas de um Governo dependente de gente que diz que “propriedade é roubo” ou que a União Soviética “não era assim tão má”.

O que não se esperava, e não se admite, é a cumplicidade activa e inconseqüente de um dos mais respeitado catedráticos do país, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa.

Governar é para todos e não se resume a selfies e abraços.

Estudante de Direito, 20 anos