1 Só faltou o champagne, mas talvez tenha havido. Ou castanholas, coisa muito dos vizinhos. O que manifestamente houve foi o subentendido do “haja o que houver”, formaremos governo: com jubilo e o (inconfundível) aroma da propaganda, o “par” espanhol do momento, Pedro e Yolanda, anunciaram há dias, com notável desenvoltura política, o seu casamento político. O PSOE do cinematográfico Pedro e o Sumar (grupo de partidos de esquerda e de extrema esquerda) da turbulenta Yolanda reluziam de felicidade pela assinatura do seu acordo com vista à formação de um novo governo. Era o primeiro mas muito leve andamento da partitura governamental que Pedro Sánchez se entretém a compor há meses, mas era preciso tocá-lo com sorrisos para amaciar o resto da composição. O resto é de ardilosa escrita e duvidosíssima execução mas o maestro não se atemoriza: está habituado a disponibilizar-se e o hábito facilita muita coisa. Desta vez — e ele sabe — irá até ao “ilimite” de si próprio: a permanência no Palácio da Moncloa vale bem qualquer missa. E mesmo que esta seja de luto pela soberania espanhola, a disponibilidade de Pedro Sánchez é magnânima. Está-lhe na massa do sangue, nos genes e agora — talvez houvesse uma réstia de dúvida — na alma.
2 Alberto Nunez Feijoo, líder do PP, ganhou as eleições em Agosto, não conseguiu formar governo, a esquerda não deixou, a direita não passará, decidiu Pedro. Para reunir os votos indispensáveis à sua própria indigitação para formar governo, o líder do PSOE bateu à porta menos recomendável do xadrez partidário, os independentistas catalães do Junts. Comandado por um foragido à Justiça, Carles Puidgemont e acolitado por outros foragidos e ex-detidos, pelas convulsivas consequências da convocação em 2017, de um referendo a favor da independência da Catalunha, realizado ilegalmente no primeiro dia de Outubro desse ano. O gesto anti constitucional desaguou nos tribunais. Houve condenações e detenções por crime contra a Constituição, mas Puidgemont já fugira de Barcelona, fê-lo logo nesse mês, a 30 de outubro, ou seja apenas 30 dias após a mediatizadissima realização do referendo: a fuga como opção política.
3 Hoje negoceia-se. Sem sombra de remorso, negoceia-se a Espanha. Primeiro houve conversações, depois a lista das exigências – uma amnistia após os indultos já aliás acordados pelo mesmíssimo Pedro Sanchéz na anterior legislatura; e hoje há uma chantagem: o reconhecimento da Catalunha como “nação”. Puidgemont não pode ter sido mais claro, Pedro Sánchez não se pode ter mostrado mais disponível. (No pacote do Junts vinha ainda, à laia de post scriptum, a exigência de 7 milhões de euros para redimir os implicados no “procés” da Catalunha além da garantia (?) verbal da substituição imediata do autarca de Barcelona, democraticamente eleito há meses, por outro partido. Depois da disponibilidade de Pedro (e de Yolanda Díaz e dos outros ) para assegurar uma amnistia a um partido fora da lei e com um líder fugido à Justiça, veio a última chantagem, a última até à próxima: ”reconhecimento” da Catalunha como “nação”. O Tribunal Constitucional vetou a pretensão: dotar o termo “nação” de “valor jurídico” era como pôr ao lume a fragmentação da Espanha: atrás da Catalunha, outras “catalunhas” viriam.
Ou seja, Pedro Sánchez estaria disponível para deixar uma Espanha em estilhaços. O mais extraordinário é que nem sempre foi assim: a possibilidade de uma amnistia foi sempre um sinal vermelho que nem Sanchez nem o PSOE, nem os ministros socialistas que governavam em coligação com o Podemos, queriam passar. Era um tabu. Fora de causa porque marcada pela inconstitucionalidade. “Uma amnistia é um esquecimento”, dizia nessa altura — nas penúltimas legislativas – um dos ministros do PSOE.
Hoje, não: Sánchez, o disponível, defende agora uma amnistia em nome do “interesse da Espanha e da defesa da convivência”. E para que receba luz verde após ter passado a linha vermelha, despachou o seu número três para Bruxelas, para ultimar o acordo com Puigdemont.
4 Pensar-se-ia que uma parte dos quadros e militantes socialistas espanhóis se indignassem, o PSOE é um fortíssimo pilar do regime, um partido de governo, fundador da democracia mas – até à hora a que escrevo – não se indignaram por aí além (com as honrosas excepções de alguns dos seus ex-líderes nacionais e regionais). É aterradoramente pouco. Tanto mais que nesta empreitada a escalada da chantagem política de Puigdemont é directamente proporcional aos sinais exteriores de optimismo de Pedro Sánchez. Dos termos negociações entre os dois, não se sabe muito de concreto– só se sabe o pior – porque o chefe do governo vai falando ao país de assuntos sempre menos relevantes mas dando-lhes importância política e mediática, como se as inomináveis cedências aos Junts não passassem de uma trivialidade. Uma indecência política.
5 Porque falo nisto? Porque ontem a Princesa das Astúrias, filha dos Reis de Espanha, que atingiu a maioridade há dias, jurou a Constituição perante as Cortes espanholas. Leonor jurou uma Constituição ameaçada face à possibilidade real de uma amnistia que tornará incerta a soberania da Espanha.
E mesmo que a tragédia deste 7 de Outubro – para sempre inscrita na escolha do mal em estado puro na história da humanidade – e o actual desconcerto do mundo atirem a Espanha para fora dos radares mediáticos, vale a pena reter esta má história.
A quem interessa o jogo sujo entre um disponível-político-madrileno e um traste-foragido-nacionalista catalão? Interessa: aprende-.se sempre sobre o uso do poder.
Além de que é muito simples: ou acabam eles, ou acaba a Espanha que conhecemos.
6 E Portugal? Portugal em caso de desastre pagará uma parte da factura.
PS: Pequena nota com importância: nos últimos dias li várias notícias sobre a compra pelo museu do Louvre de um primitivo português. Uma óptima notícia, o Louvre é grande! Mais porém do que a compra; que o definitivo prestígio do museu; que o pintor, as suas influências – ainda flamenga e já italiana – a luminosidade suave das suas cores ou a sensualidade na pose das suas personagens; mais do que a perspectiva de que “isto” seja o principio de outra era para a nossa pintura de ontem, o que me interessou, foi o que tornou possível este feito. E que vi pouco contado.
O autor do feito chama-se Philippe Mendes, é luso francês e vive a cavalo entre Paris, Lisboa e o mundo. Em Paris tem duas galerias de arte; em Lisboa torce pela nossa; no mundo, compra, vende e aconselha. Mas isto já se sabe. O que se sabe menos mas conta mais é que só uma pessoa dotada de invulgaríssima iniciativa e inabalável, quase feroz persistência, seria capaz de ir ultrapassando as várias etapas desta aquisição. Coisas pouco portuguesas embora esta seja uma história patriótica e não apenas artística ou cultural: há muito tempo que Phillipe Mendes trabalha com um empenho quase fervoroso como “embaixador” e traço de união da nossa cultura, apoiado por um critério certificado internacionalmente pelos directores dos melhores museus e grandes colecionadores. Ama a nossa arte (e ainda acima disso ama Portugal, seu berço), conhece-a bem, fala dela, compra-a, mostra-a, explica-a. Convence. Acredita-se nele. Tudo isto que ficara já bem impresso na entrevista que me deu aqui mesmo no Observador há uns meses, foi agora ampliado com a “operação-compra” do quadro atribuído a Cristóvão Figueiredo e Garcia Fernandes, a sua venda ao Louvre e as perspectivas de futuro abertas por este surpreendente gesto. Mas oh quanta persistência, minúcia, rigor, trabalho não foi indispensável nos estudos, restauros, investigações, peritagens, exames, certificações, reuniões, desde que Philippe comprou o quadro numa leiloeira portuguesa até que ele passou a porta do museu francês. Um feito, sim, e afinal o Louvre comprará por ano talvez meia dúzia de grandes quadros.
Há pouquíssimas coisas que eu aprecie tanto desde sempre como a iniciativa produtiva. Como a de Philippe Mendes. Espero bem que as “autoridades” já tenham dado por ele.