Portugal é, como se sabe, um país muito desigual. E a desigualdade tende a gerar imobilidade social. Uma sociedade imobilista não permite demonstrar e premiar adequadamente o talento, as novas ideias ou a demonstração de capacidades cognitivas ou socioemocionais transformáveis em maior produtividade e riqueza agregada. Não permite, sobretudo, valorizar a diversidade dessas ideias de forma independente da sua origem social. Sujeita a sua validade à capacidade de ultrapassar barreiras que, consistentemente ao longo dos percursos de formação, permitem que as elites sejam capazes de reproduzir, para os seus filhos, as suas próprias vantagens. No caso português, o desempenho escolar no ensino obrigatório, quando medido pela capacidade de obter classificações elevadas ou evitar reprovações, parece assumir maior importância do que a própria segregação de alunos por escolas, por exemplo. O papel das famílias no apoio a estas trajetórias de sucesso é importantíssimo tal como o é na formação da capacidade de aprendizagem nos anos mais precoces (logo na educação pré-escolar).

O que me interessa discutir neste artigo, porém, é a forma como o acesso e os diferentes percursos no ensino superior poderão ser, cada vez mais, mecanismos de propagação de desigualdades.

O conceito de mobilidade social é amplo. Mas é sobretudo a baixa mobilidade entre gerações que caracteriza (negativamente) a sociedade portuguesa. A mobilidade ascendente é baixa, a mobilidade descendente é hoje mais provável. Dados recentes mostram que o emprego dos pais determina em grande medida o dos filhos. A probabilidade relativa de um filho de um trabalhador industrial português, por exemplo, vir a assumir um cargo de gestor é das mais baixas entre os países da OCDE. O nível de capital humano dos pais como determinante do número de anos de educação dos filhos é também desmesuradamente importante.

Neste contexto, assegurar o ingresso e a conclusão de um curso superior é hoje uma condição necessária para evitar, em particular, a possibilidade de estagnação ou despromoção social. Em primeiro lugar, porque os elevados benefícios salariais e coletivos desse investimento continuam a justificá-lo. Em segundo, porque um curso superior desenvolve, idealmente, as capacidades de pensar criticamente e de forma abstrata, de adaptação e de resolver problemas que cada vez mais empregadores precisam e que não podem ser substituídas por máquinas ou robôs. Fornece igualmente um espaço de desenvolvimento de comportamentos, valores e posicionamentos éticos essenciais às democracias e às suas instituições. Nesse sentido, a universalização progressiva do ensino superior deve ser um desígnio nacional assumido frontalmente, sem medos, nem qualificações. Aliás proponho desde já um teste simples para os que argumentam que “o ensino superior não pode ser para todos”: a sua tomada de posição aplica-se aos seus filhos ou apenas aos filhos dos outros?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não basta, contudo, universalizar qualquer ensino superior. A expansão do acesso pode muito provavelmente coexistir com uma crescente estratificação e com o aumento das desigualdades. Nesse caso, se o sistema de ensino superior for incapaz de evitar o surgimento de novos mecanismos de reprodução intergeracional de desigualdades, o potencial de desencontro de expectativas é enorme e prejudicial à sua generalização.

Considere uma forma simples de avaliar os impactos de várias políticas relativas ao ensino superior à luz desta perspetiva: sempre que essa medida resultar em maior seletividade ou no aumento das disparidades da despesa por aluno e, consequentemente, do hiato de qualidade entre as instituições de elite e as restantes, o potencial de imobilismo está instalado. A possibilidade de os empregadores confundirem sinais de privilégio com sinais de capacidade é muito maior do que possamos querer acreditar. E no contexto de um mercado de trabalho muito segmentado e com um número relativamente limitado de bons empregos, o potencial de reprodução de desigualdades é enorme.

Alguns exemplos da dificuldade em negociar o equilíbrio necessário entre a massificação do ensino superior e o controlo dos seus níveis de hierarquização são já aparentes. A redução de propinas, ou mesmo a ideia de um ensino superior tendencialmente gratuito, não deve ser implementada se acelerar os problemas de subfinanciamento crónico que caracterizam o nosso sistema. Resultará provavelmente na diminuição assimétrica do nível da qualidade do ensino de primeiro ciclo e reforçará a probabilidade de abandono sobretudo de alunos provenientes de famílias de menor rendimento. Um debate sério deste tipo reconhece esse perigo e dá prioridade à necessidade de um novo contrato social capaz de garantir um reforço significativo do investimento no ensino superior público. Já no contexto de dificuldades de financiamento, o foco na progressividade da partilha de custos e no reforço de mecanismos de ação social é muito preferível. Tal como é tornar essa ação o mais transparente e previsível possível. Por outro lado, a crescente importância dos mestrados quando associada à liberalização das suas propinas (eventualmente como forma compensatória) alargará certamente os problemas de mobilidade social. A verdade é que continuam a ser os percursos relativamente longos e seletivos no ensino superior aqueles que resultam em maiores benefícios salariais.

Também as preocupações de gestão da rede e da definição do número de vagas deve ser analisada à luz da mesma ideia. Maior seletividade e maior autonomia nos processos de seleção de instituições de maior prestígio são garantia de menor mobilidade social. Pelo contrário, o foco deverá estar, quer no alargamento do número de vagas nas instituições mais capazes de promover percursos de mobilidade ascendente, quer no reforço do financiamento dedicado à criação de mecanismos de inclusão e diversificação de oferta capazes de atrair alunos de contextos mais desfavorecidos: a criação, por exemplo, de curricula mais diversificados ou modulares, com componentes mais experienciais ou mais vocacionais também em instituições generalistas; a criação de programas de tutoria ou mentoria que auxiliem a integração desses públicos e a sua transição do ensino secundário; a criação de anos zero ou ofertas fundacionais que permitam alargar as vias de entrada nessas instituições e a homogeneização de competências. Todos estes objetivos exigem provavelmente mecanismos de financiamento dedicados explicitamente ao aumento da qualidade do ensino e não apenas subsídios genéricos a alunos ou instituições.

Será ainda necessário considerar que algumas intervenções, implementadas com objetivos desejáveis, possam ter consequências não antecipadas. A tentativa de corrigir assimetrias regionais, por exemplo, a partir da transferência de vagas para o interior ou regiões menos desenvolvidas, por exemplo, pode aumentar o nível de seletividade nas instituições de maior prestígio localizadas nos grandes centros urbanos. A estratégia de criação de vias de acesso próprias e a necessidade de promover a integração dos alunos do ensino profissional no superior – um objetivo essencial – deve procurar ser o mais centralizada possível, assim como transversal a todas as instituições públicas (e não apenas orientada para instituições politécnicas). A centralização de critérios ou de exames de acesso é, ao contrário do que alguns possam acreditar, promotora de inclusão. A opção por concursos meramente locais ou por total autonomia na definição de critérios de admissão, pelo contrário, aumenta a possibilidade de criar uma segunda ou terceira divisão no ensino superior. Sobretudo se a separação de vias de acesso permitir que o ensino profissionalizante abandone a pretensão de combinar um ensino prático e vocacional com o desenvolvimento de competências fundacionais de banda larga. O futuro do emprego penalizará, a prazo, perfis excessivamente técnicos e rígidos. A necessidade de criar mecanismos de acesso ao ensino superior que avaliem o desempenho das escolas secundárias com base em critérios capazes de evitar corridas de desempenho nos exames nacionais é ainda uma discussão que merece ser aprofundada. Mas, também aqui, esse alargamento de critérios não deve resultar em maior discricionariedade de critérios de admissão e maior seletividade. Também aqui a formalização de procedimentos e a homogeneização pode ser amiga da inclusão.

Finalmente, promover a função de elevador social do ensino superior exige a capacidade de identificar concretamente quais as instituições e mesmo os ciclos de estudos em cada área que cumprem melhor essa função. A utilização de dados administrativos massivos que cruzem a dimensão socioeconómica das famílias, o percurso no ensino superior e a posterior integração no mercado de trabalho começa hoje a ser exequível também em Portugal. O tratamento e posterior disponibilização pública de forma absolutamente anonimizada, transparente e intuitiva de estatísticas e relatórios individualizados de mobilidade e de (in)sucesso no mercado de trabalho poderá promover decisões individuais mais informadas, criar mecanismos de competição saudável entre instituições e permitir que o financiamento público seja mais eficiente e sujeito a demonstração de resultados. O potencial de transparência existe. A realidade das escolhas individuais e da ação política ainda não o aproveita devidamente. Como resultado, estes debates continuam muitas vezes a ser feitos com base em impressões ou visões distorcidas da realidade que atrasam mais do que promovem uma maior igualdade de oportunidades.

Professor Auxiliar na Universidade de Aveiro e investigador do CIPES (Centro de Investigação em Políticas do Ensino Superior)

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.