Sendo evidente que o líder da oposição prefere uma estratégia de não afrontamento ao Governo, em sede parlamentar ou no dia-a-dia do “combate” político, é curioso ler como o Governo mantém, com lucros claros, a lógica da desconsideração pública do PSD e de todos os partidos teoricamente à sua direita. Percebe-se a tática. Com o PSD seguro, o mais importante é manter um discurso para entorpecer a esquerda. Para Costa, se os camaradas vierem, sejam de que “ismo” forem, pois que venham. Se não quiserem, paciência, porque já tem apoio noutro lado. Ninguém quer que o Governo caia. Tal como estamos, sem alternativa viável, é melhor assim. Nisso, a oposição tem razão.

Deste ponto de vista, o Dr. António Costa soma talento político à inépcia de quem deveria ser o seu principal adversário. Perdido num quase deserto de ideias e manifestamente incapaz de tornear o muro de silêncio a que a comunicação social o votou, o PSD é comunicacionalmente ultrapassado pela demagogia do Chega, note-se que muito eficaz, e não se afirma como alternativa que não seja através do “complemento” ao Governo. Um dia, talvez, o ónus da governação venha a cair no colo dos sociais-democratas, mas temo que nem por cansaço dos Portugueses o poder saia da esfera do PS. Tal como o PSD perdeu com as saídas de Cavaco Silva e Passos Coelho, o PS só voltará a sofrer quando António Costa entender mudar de vida. Antes disso, sem uma personalidade forte que se lhe oponha, o PS de Costa é agora imbatível, com ou sem Covid. Em conclusão, António Costa governa porque não há alternativa e não parece haver, por enquanto, possibilidade de eleitoralmente afastar o PS do poder.

É nesta linha que se entende a arrogância da ministra Mariana Vieira da Silva quando afirmou, no debate do Estado da Nação, que a direita teria preferido que o SNS falhasse. Felizmente ainda há gente politicamente séria, como o Dr. Francisco Assis, que em entrevista até reconheceu que o Governo do Dr. Passos Coelho não destruiu o Estado Social. Mas Passos Coelho era uma direita diferente da soma de todas as direitas que por aí vão proliferando. No estado atual da Nação e dos partidos nacionais, há que esperar por uma reorganização de forças, a qual passará, como sempre, pelo aparecimento de novos vetores. Vetores que serão pessoas com capacidade de liderança, inspiradores e carismáticas, capazes de fazer com que os eleitores acreditem e se disponham a votar nos programas que elas protagonizarem. Para já, em qualquer eleição que ocorra, os votos que não forem de António Costa serão contra António Costa e não a favor de uma alternativa a António Costa. No meio disto, por acaso, o PS é o partido de António Costa.

Li também que a Dra. Mariana Vieira da Silva defendeu que “estamos preparados – o Governo e o país – para responder a esta crise de forma diferente”. Estamos preparados? O historial político de juras de preparação não nos dá muita segurança.

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Vejamos a evolução do pensamento da senhora Ministra da Saúde, aquele que deveria ser a principal responsável pela saúde em Portugal:

Em janeiro – “Temos dispositivos que nos permitem responder a todas as necessidades”.

Em fevereiro – “Estamos preparados para que um cenário semelhante àquele que está a acontecer em Itália possa acontecer também no nosso país. O que, de acordo com uma previsão de risco normal, é bem possível que aconteça. Aliás, o Centro Europeu para o Controlo de Doenças diz exatamente isso, que os países europeus se devem preparar para um contexto semelhante àquele que a Itália está a viver neste momento”.

Em março – “Não estivemos parados e, contudo, como todos os outros, tememos não estar preparados porque não depende só de nós”.

Em julho – “Não estávamos preparados”.

E, ainda em julho, na conferência de imprensa do dia 6, o Dr Lacerda Salles confirma a evidência de que nunca o Governo mentiu –  “Nunca negámos que Portugal, como a generalidade dos países, não estava preparado para uma epidemia desta escala e com estas características.”

É com esta confiança na preparação nacional, a mesma da Dra. Mariana, que vamos afrontar o Inverno que aí vem, com inúmeras incertezas, munidos de uma capacidade de resposta que sabemos ser insuficiente e com um Governo que ainda hoje se confunde, confunde-nos e vive na confusão. A que dá jeito a António Costa, o mais virtuoso dos funâmbulos.

A “Visão Estratégica” que já comentei, no que à saúde diz respeito deixa-nos desconfortáveis. Ainda mais quando sabemos que o Governo não vai investir, como não o fez nos últimos quatro anos e meio, na saúde dos Portugueses. A nossa limitadíssima experiência de “saúde em todas as políticas” tem sido boa nuns dias e caricata noutros. Com a falta de “Visão” patente nada irá mudar.

Há coisas boas, convirá não esquecer, que vieram com a Covid-19. Temo que acabem quando voltarmos a acreditar que estamos salvos deste vírus, o tal que substituiu todas as ameaças. Por exemplo, proibir a venda de álcool após as 20 horas em todos os estabelecimentos que não sejam de serviço de refeições ou bebidas, é uma medida que só peca por tardia. Bom contributo para o combate ao abuso de álcool que é mais mortal do que a Covid-19. Já o escrevi, a implementação de medidas de lavagem e desinfecção das mãos é útil e tem externalidades importantes, como diriam os economistas. Espero que os dispensadores de desinfetantes não desapareçam com a Covid.

Mas o sinal, despropositado, de que ainda há dúvidas quanto à integração de uma vacina para o SARS-CoV-2 na estratégia pública de vacinação revela falta de visão, até de seriedade, do Governo. Supondo que haja uma vacina efetiva na prevenção da Covid-19 será preciso optar. Ou a ameaça é tão real e importante, como a têm apresentado, e há que vacinar, ou a Covid-19 é epidemiologicamente irrelevante e não se justifica vacinar a população em risco. Havendo, no caso da gripe, vacina gratuita para grupos de risco, idosos em particular, será difícil, depois de todo o aparato, explicar porque não se institui um programa de vacinação gratuita para o SARS-Cov-2. Sinceramente, supor que os contribuintes ainda terão que pagar a vacina do seu bolso é tolice. Dizê-lo é tontice completa. A oposição, mantendo o silêncio, parece concordar com a ideia. Faz mal.

Todavia, o ridículo vence. As orgias serão legais? Confesso que nunca tinha pensado no assunto, eu que estou sempre a ser acusado de ter querido regular comportamentos privados em nome da defesa da saúde pública. Proibir orgias, coisa que francamente não faço ideia de como possa ser feito, seria sempre útil para o combate à propagação de inúmeras doenças, algumas das quais, a sida à cabeça, muitíssimo mais mortais do que a Covid-19. Todavia, o grande problema parece ser discutir se as atividades de sexo em grupo estão abrangidas pelos regulamentos da DGS para o SARS-CoV-2, como se as doenças sexualmente transmissíveis, incluindo as de transmissão oral, não fossem bem mais relevantes. Uma breve resenha de agentes. Clamídias, Neisseria, Treponema, Haemophilus, Estreptococos, Herpes variados, HIV, HTLV, Hepatites sortidas, vírus do papiloma, Mycobacterias, Candida, enfim, o que se quiser.

Fica o alerta para os frequentadores de ajuntamentos orgásmicos. Não se esqueçam do preservativo que não deve ser reutilizado, nem partilhado, e, já agora, como uns colegas de Harvard sugeriram há uns tempos, sempre com máscara, para cobertura de boca e nariz, e, obviamente, viseira. Acrescentem touca com bata descartável e, com sorte, pode ser que ninguém os reconheça. Imagino que seja divertidíssimo. E, já agora, não fumem, não inalem, não aspirem e não engulam nada. Um conselho, imagino, da DGS, do SICAD, do INFARMED e da ASAE. Da GNR, da PSP e da PJ também, acho eu. Bom, alguém terá levado a sério todas as recomendações imagináveis. Proponho que lhe deem o Nobel da hipocondria.

Mas, além da Dra. Mariana, as intervenções da Ministra da Saúde no debate do Estado da Nação também foram eloquentes. Quando lemos o corolário de ensinamentos que o ministério tirou da pandemia, verificamos que a senhora ministra tirou poucas lições da pandemia.

  1. Máscaras dificilmente serão classificadas como tecnologia avançada e a nossa produção nacional de ventiladores dificilmente competirá, a longo prazo, com a das marcas categorizadas. Todavia, fabricar e vender ventiladores e máscaras, por mais decorativas que sejam, é conjuntural e a procura diminuirá. Se a industrialização for só por esta via, voltaremos à monocultura do turismo.
  2. O conhecimento da multifatorialidade e pluridisciplinaridade nos combates a crises de saúde pública é tão antigo que não é lição de agora. A lição é não terem antecipado essa necessidade de integração de respostas e não terem percebido, até hoje, o papel das intervenções de proximidade.
  3. Vir louvar a teletriagem e telediagnóstico como resultado da pandemia, é andar com mais de 20 anos de atraso e, infelizmente, confessar que todos os planos para implementação de respostas efetivas com telemedicina ficaram por implementar. Como, desconfio, continuarão a ficar.

Disse também, o que demonstra reconhecer uma evidência de que andou inicialmente esquecida, que “a maior força do SNS são os seus profissionais”. No entanto, veja-se a desfaçatez com que se mente a propósito de profissionais contratados, não se sabe para quê, nem quem, com que saberes, nem para onde. No caso dos médicos já é enjoativo o discurso de que se contrataram mais, quando mais não se fez do que incorporar especialistas que terminaram o internato e, por conseguinte, já trabalhavam no SNS. Quantos médicos se mudaram do setor privado para o público nos últimos anos?  Pena que não seja capaz de os remunerar como devia. Seria o caminho mais direto para recrutar e manter uma força de trabalho motivada e consequente. O Governo continua a confundir quantidade de profissionais com a qualidade do seu trabalho. Atingidos determinados limites, abaixo dos quais estamos em algumas especialidades e locais, é preferível ter menos gente, melhor, mais competente e melhor remunerada, do que encher os serviços de proletários descontentes. Custa assim tanto ver isso? Infelizmente, nem as organizações profissionais reconhecem esta evidência. Pior, muito pior, é o sistemático recurso a medidas de circunstância, sempre atrás do prejuízo, como o “plano excecional de contratação de atividade adicional de primeiras consultas hospitalares e cirurgias com remuneração direta e majorada aos profissionais de saúde” de que falou no discurso.

Mas a Dra. Marta Temido não tem sorte nas palavras que escolhe. Ainda há poucos dias, a propósito da situação epidemiológica nacional que, diga-se em abono da verdade, não é alarmante nem, por enquanto, perigosa, disse que Portugal estaria “a seguir um padrão confortável na evolução do número de novos casos”  Que palavra mais estranha para usar em saúde pública. Confortável, nem o teste é. Confortável, não pode ser a mortalidade, nem as quase cinco centenas de internados. Confortável, não é o embargo turístico que os números, sejam grandes ou pequenos, levaram outros países a impor-nos. Esta pandemia poderá ser tudo, mas confortável é que não é.

Entretanto, faço minhas as palavras de alguns colegas que já se manifestaram preocupados com o Inverno. Não poderemos atrasar a vacinação contra a gripe sazonal, tal como não poderemos voltar a fechar o sistema de saúde aos utentes que dele necessitem. A maior tragédia associada aos SARS-CoV-2 não é a doença que produz, com baixa morbilidade populacional e baixíssima mortalidade. O problema foi, é agora claríssimo, a impreparação política, a péssima comunicação, a inabilidade dos governantes, a fé num SNS que continua a não ter capacidade de resposta em picos de procura e a incapacidade de antecipação de impactos sociais, económicos e sanitários das medidas tomadas. O problema do problema é que não vemos sinais que alguma coisa tenha melhorado. Nada de inesperado, quando houve quem tenha acreditado que comprar ventiladores seria a solução mais urgente e definitiva.