Deixem-me contar uma história de aceitar convites. Não é minha, é de Candace Bushnell (a autora do livro que germinou a ideia da série de televisão icónica O Sexo e a Cidade), em 4 Blondes. Uma modelo nova-iorquina gostava de passar os verões nos Hamptons acima das suas possibilidades. Então, a cada primavera, escolhia um namorado endinheirado (sem intenções de durabilidade) que viesse com anexo de uma casa aceitável nos Hamptons. Vindo o verão, restava-lhe aceitar o convite do namorado para passar as férias na sua casa de veraneio. Finda a temporada estival, o namoro terminava.

Esta história tem-se passeado na minha memória desde que começou o caso da viagem do secretário de estado Rocha Andrade paga pela Galp. Sobretudo depois de Ascenso Simões ter tuitado que nada de mal havia neste assunto, afinal o secretário de estado limitara-se a aceitar um convite. Já não é a primeira vez que à esquerda se justificam comportamentos estranhos como meras aceitações de convites. Mas, convenhamos, mesmo estando todos nós convencidos da ausência de expetativa de sexo neste caso (ao contrário de em 4 Blondes), ninguém acredita na existência de políticos ingénuos que suponham que todos os convites são aceitáveis.

E – no convite concreto aceite por Rocha Andrade – é mesmo mentira descarada afirmar-se (como fez o prevaricador) que se tratou de uma cortesia ao abrigo da adequação social. As cortesias não têm valores que vão das largas centenas aos milhares de euros. Também não é nada socialmente adequado qualquer político receber presentes tão avultados. Nem precisamos de chegar à corrupção declarada para objetarmos a estes convites. As empresas não gastam dinheiro se não para ganhar dinheiro, e o que pretendem com estes convites é criar uma rede que lhes permita acesso mais direto aos responsáveis da tutela. E, quando for o caso, já lançaram as sementes para que políticos ou reguladores decidam favoravelmente (e, provavelmente, dentro da legalidade) à empresa que foi em tempos tão generosa.

Mas como (quase) sempre, tão ilustrativas foram as reações ao caso como a descontração com que políticos aproveitam qualquer benesse que caia em cima do cargo. Houve a patética tentativa concertada nas redes sociais de equiparar as tontas justificações de falta dos deputados do PSD que também fizeram a viagem (aparentemente paga pelos próprios) ao ato de Rocha Andrade. Como se quem tutelasse, mesmo de resvés, a apropriação de dinheiro dos contribuintes (que são os impostos) pudesse ter sobre si sequer a suspeita de que costuma surripiar um ou outro bago de uva para comer quando no supermercado – havendo ou não litígio com a empresa generosa que faz ‘cortesias’ de dois mil euros.

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Os colegas do PS na geringonça, almas sensíveis e moralistas que passaram os últimos anos a pedir demissão de qualquer pessoa, nos ministérios e nas empresas públicas, possuidora de batimento cardíaco, desta vez torceram o nariz mas recatadamente aceitaram que os secretários de estado que recebem ‘cortesias’ hipergenerosas da Galp permanecem no governo. Não que alguém duvidasse, mas a suposta moral de buraco da agulha de BE e do PCP soçobrou mal foi necessário para a continuação do seu poder e influência junto do governo que apoiam.

Piadistas pretenderam que a viagem oferecida a Assunção Cristas, durante o Euro 2016, pela Federação Portuguesa de Futebol (que é uma instituição de utilidade pública) teve a mesma gravidade e simbolismo que a oferta de uma grande empresa aceite pelos secretários de estado. Outros questionaram a Galp, como se não fosse normal uma empresa, abertamente em defesa dos seus interesses particulares, procurar boas relações e boa vontade com o poder político. E, quantas vezes, é punida pelo mesmo poder político se não assegura quanto pode estas ‘cortesias’ dispendiosas.

O objetivo foi claro: dar ideia de que todos fazem o mesmo, de que são todos iguais, para distrair os eleitores da especial gravidade dos atos dos três secretários de estado, mais ainda do que os presidentes de autarquias, com Rocha Andrade no cimo do pódio.

No meio disto percebemos, pelo caso da notícia falsa do JN sobre um juiz que decidiu duas providências cautelares contra o ministério da educação, que o governo se dedica ao negócio de investigar onde estudam os familiares dos juízes (e sabe-se lá o que mais) e de transmitir informações falsas para a comunicação social recetiva. Temos um presidente que fala de tudo, mas deste atentado à independência dos tribunais nada ouvi.

Por fim, outra vez a conta de twitter de António Costa – que será brevemente, estou certa, objeto de papers e dissertações de psicologia política sobre o efeito de banalidades e clichés nos eleitores. Com o país a arder há vários dias, Costa entendeu ignorar as labaredas e os que corajosamente as tentam conter. Mas Telma Monteiro ganhou a medalha e Costa correu (e bem) a felicitá-la. Os fogos (que deixam descansado o ministro do ambiente – que alívio!), as populações afetadas, os bombeiros e todos os envolvidos na proteção civil só ontem, depois de protestos indignados, foram reconhecidos pelo pm, quer com tuites quer com a visita inócua a umas instalações da proteção civil. Ninguém pode acusar Costa de ter as prioridades bem arrumadas.

O BE, que em tempos também rasgou as vestes pelos efeitos dos fogos de verão, agora só despeja afetos sobre a população da Madeira. Está visto: os incêndios socialistas – e nem todos envolvem chamas e madeira ardida – queimam menos do que os outros. É porventura a consequência mais divertida da geringonça: ver o moralista BE num pântano moral.