Sem surpresas, Vladimir Putin ganhou as eleições russas de domingo passado com a expressiva votação de 75 por cento. É assim nas “democracias soberanas”: antes de votos já há vencedores, só não sabemos quantos pontos percentuais lhes serão atribuídos. Ironias à parte, interessa, agora que a poeira assentou, saber quais as consequências deste quarto mandato para a Europa. Sabemos que Portugal é o estado mais distante da Federação Russa, mas pertencendo à União Europeia e, especialmente à NATO, poderá ter de rever a sua posição moderada relativamente a estas questões.

Há três argumentos que importa fazer: além dos Estados Unidos, a Europa, especialmente a Aliança Atlântica, é considerada, em todos os documentos estratégicos emitidos por Moscovo, uma ameaça vital. Ainda que nem nos passe pela cabeça invadir a Rússia (como aliás ficou bem demonstrado na fraca reação à anexação da Crimeia), o Kremlin não abdica deste princípio. E a estratégia tem sido a de corromper a união dos estados por dentro.

O segundo ponto é que Putin é o autor da Rússia pós-Guerra Fria. E se para este lado o conflito bipolar é historia (quase) antiga, a nova Rússia construiu-se nos escombros e no ressentimento dessa derrota. E se o ressentimento é um fator muito pouco estudado nas relações internacionais, é igualmente um motor poderosíssimo de ação política.

Finalmente, tornou-se um lugar comum dizer que Moscovo está em declínio. Os indicadores confirmam essa suspeita – a economia russa gera apenas 2 por cento da riqueza mundial. Mas talvez não haja nada mais perigoso que um estado a perder as capacidades, mas ainda com força suficiente para fazer ouvir a sua voz. Resumindo, a eleição da Vladimir Putin apenas confirma o que já sabíamos. Que a Rússia é, efetivamente, uma ameaça. E que todos os estados europeus, longe ou perto geograficamente, deveriam ter uma posição concertada para que as intenções de Moscovo não se concretizem.

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Claro que é mais fácil dizer do que fazer. Quanto ao primeiro ponto, Putin escolheu a estratégia “dividir para reinar”, até por saber que uma Europa desunida quanto ao tema Rússia terá sempre dificuldade em abanar o gigante – de pés de barro ou não, a Rússia é um gigante – vizinho. As formas de o fazer têm sido as mais diversas: o apoio aos partidos não democráticos que estão cada vez mais presentes no panorama político europeu; a intromissão em assuntos dos estados ou da união através de métodos menos transparentes; pequenos apontamentos que acabam por ser sementes de discórdia entre estados europeus.

Verdade seja dita: por vezes não é preciso fazer nada. O recente envenenamento de Sergei e Yulia Skripal (um antigo espião soviético e a sua filha) com gás neurotóxico no Reino Unido dividiu a Europa entre os que querem seguir Theresa May na sua resposta robusta aquilo que considera ser um “ataque com arma química em solo europeu” que “viola o direito internacional público” e os que se perfilam atrás de Jean Claude Junker que, em nome da Comissão Europeia, felicitou o presidente russo pela sua vitória eleitoral e desejou que esta quarto mandato fosse motivo para “o restabelecimento de uma ordem pan-europeia”. Perante estas duas posições simultâneas, Putin deve estar a esfregar as mãos de contentamento.

Até porque – este é o segundo ponto – a Rússia vê a Europa como um inimigo vital. A Guerra Fria pode ter acabado sem tiros, mas houve vencedores e vencidos e na tradição russa se as vitórias não se esquecem (vejam a pompa e circunstância com que ainda se comemora do Dia da Vitória Soviética na II Guerra Mundial) as derrotas também não. Daí que a permanência da NATO depois da Guerra Fria e o seu alargamento a países do ex-pacto de Varsóvia seja vista por Putin – e pela maioria da população russa – como uma afronta. E faça-se o que se fizer, esta realidade não vai mudar.

Mais a Aliança Atlântica o símbolo de um tipo de ordem internacional que desagrada profundamente aos russos: a de corrigir as injustiças contra os direitos humanos, pelas armas se necessário. Putin sempre se lhe opôs com profunda veemência, especialmente desde as Guerras dos Balcãs. E sempre considerou que este tipo de imiscuidade internacional violava os princípios da soberania e do direito internacional. Assim, tudo fez para criticar e minar esta disposição liberal. Aliás, conta­-nos Arkady Ostrovsky, no seu muito premiado livro The Invention of Russia, que o Kremlin comemorou a vitória de Donald Trump – não porque quisesse estabelecer qualquer tipo de amizade com os EUA – mas porque este prometia acabar com a ordem liberal que Putin “detesta”.

E se Moscovo está mesmo em declínio – este é o terceiro ponto –, pior um pouco. Diz-nos a história que as potências que estão a queimar os últimos cartuchos estão dispostas a (quase) tudo. E Putin – massivamente apoiado pelos russos que vêm nesta política externa assertiva e nacionalista o renascimento do orgulho nacional, que muito prezam – tem mostrado isso mesmo: além das questões analisadas no primeiro ponto, Moscovo já pegou em armas duas vezes para travar o avanço da influência ocidental na sua esfera de influência: na Geórgia, em 2008, e claro, na Ucrânia, há três anos. E fê-lo, quer queiramos quer não, com relativa impunidade. E se dúvidas ainda houvesse, no último discurso do Estado da União, Putin declarou que a Rússia desenvolveu armamento nuclear de tecnologia de ponta e que a Rússia está pronta para o que der e vier. Bluff ou não, uma coisa é certa: Moscovo quer que o mundo o percecione com o respeito ou até o medo que se deve a países com capacidades militares superiores. Afinal, quem é que a ameaça a Rússia para justificar tão grande investimento?

Volto a Arkady Ostrovsky, para lembrar que a Rússia “voltou a uma posição de proeminência do ponto de vista ideológico” – coisa que devia preocupar os responsáveis políticos muito mais do que preocupa, especialmente nas democracias, onde as opiniões públicas podem não ser totalmente soberanas, mas têm uma palavra a dizer. Mas essa proeminência traduz-se agora “num confronto entre ideias e ideologias, [em que] as linhas de batalha mudaram. Onde antes o conflito entre a democracia liberal e o nacionalismo autoritário se travava em linhas geográficas precisas, em que a América e a Europa estavam de um lado e a União Soviética do outro, hoje as linhas de combate encontram-se em cada estado.”

Confirma-se. A Europa está dividida entre os estados que acreditam que a Grã-Bretanha tem razão e as ações russas em solo europeu não podem ser toleradas e a Europa de Junker, que sonha com uma relação privilegiada com o Kremlin de Putin. Mais, dentro dos próprios estados as divisões vão-se adensando (por exemplo, Jeremy Corbyn tem sido uma voz ativíssima na defesa da Rússia), sendo Moscovo, cada vez mais, motivo de contenda entre partidos. Soluções? Uma posição conjunta, que me parece que só pode ser a de cerrar fileiras contra quem nos quer dividir. É uma política com custos? Sim. Pode alienar o eleitorado dos partidos tradicionais e, mais grave, pode testar os limites de Moscovo. Mas a inação e a divisão têm um preço muito mais alto: o aumento da influência russa, consequentemente uma ameaça cada vez maior à segurança e, principalmente, à estabilidade europeia. Como se já não tivéssemos suficientes assuntos com que nos preocupar.