Tanto à esquerda como à direita, proliferam reacções de surpresa e choque perante a vontade de António Costa de sujeitar o país pela primeira vez em quatro décadas de democracia a um governo suportado por uma frente popular que junte o PS à extrema-esquerda. A preocupação face ao cenário é compreensível, mas a surpresa nem tanto, já que antes das eleições esta possibilidade foi começando a tomar forma com contornos relativamente nítidos.
Como assinalou Alexandre Homem Cristo, os sinais que apontavam para essa real possibilidade foram-se acumulando: “A presença de António Costa no congresso do LIVRE. O fascínio pelo Syriza. A “leitura inteligente” do Tratado Orçamental. A rejeição do conceito de “arco da governabilidade”. Os auto-elogios de Costa quanto à sua capacidade negocial na Câmara Municipal de Lisboa. Ou, a uma semana das eleições, a notícia do Expresso (nunca desmentida) de que o PS governaria mesmo perdendo as eleições. Enfim, a lista é interminável. E se é certo que nunca houve, da parte de António Costa, a confissão declarada de que identificava parceiros no PCP e no BE, o contrário é igualmente verdadeiro – nunca negou essa possibilidade e deu vários sinais de que o cenário era verosímil.”
Vale a pena no entanto ir um pouco mais além de António Costa e procurar as raízes doutrinárias do projecto de reorganização da esquerda portuguesa que se implantou e tornou a linha dominante no interior do PS. Para o efeito, importa recordar um artigo de Julho de 2015, publicado no Jornal de Notícias por Tiago Barbosa Ribeiro, Presidente do PS Porto, membro da Comissão Nacional do PS e uma das principais influências intelectuais na corrente interna do PS que vê com bons olhos a constituição de uma frente de esquerda com comunistas e bloquistas. Nesse artigo, adequadamente intitulado “Vamos acabar com o PREC”, Tiago Barbosa Ribeiro não podia ter sido mais claro relativamente à sua visão e intenções para o futuro do PS.
Vale a pena relembrar as linhas principais da sua argumentação (e acção):
“A especificidade portuguesa resulta do PREC e do papel que o PS assumiu na estabilização revolucionária com a opção por uma democracia pluralista ocidental. Esse combate fez-se com democratas de muitas cores, com os socialistas e muitos outros, mas introduziu o anticomunismo (hoje um anacronismo da Guerra Fria) como matriz de uma parte do PS e, por outro lado, transformou o PS numa casa de inimizades comuns para outras esquerdas que, digladiando-se entre si, sempre se entenderam sobre o «revisionismo» (outro anacronismo) representado pelo PS como tampão a uma via revolucionária. (…) Foi com esse espírito que, em nome do PS Porto, enviei uma carta a vários partidos, sindicatos e movimentos representativos da esquerda portuguesa. O caminho não é fácil, mas está dado um passo importante para o diálogo. As respostas até ao momento são encorajadoras e as reuniões que já ocorreram (com BE, Renovação Comunista, CGTP, UGT, APRE!, e outras agendadas) demonstram que não há interditos e que a esquerda pode somar à sua maioria social o capital de uma maioria política, sem preocupações com aritméticas eleitorais nem com ciclos de curto prazo. O objectivo, já conseguido, é alargar o campo de possíveis. (…) A esquerda portuguesa não está condenada a manter-se dividida. As novas gerações de dirigentes dos partidos e movimentos de esquerda não têm as feridas da memória histórica e por isso não têm de carregar as suas cicatrizes.”
A agenda enunciada publicamente por Tiago Barbosa Ribeiro é clara, transparente e explícita e está a ser meticulosamente colocada em prática a nível nacional por António Costa na sequência da sua derrota eleitoral. Contra essa tentativa de implementação reagem – agora – outras vozes do PS, como Francisco Assis ou Sérgio Sousa Pinto. Em democracia, ambas as posições internas do PS são legítimas mas são também muito provavelmente incompatíveis.
Desde logo por razões históricas que têm a ver com a génese, constituição e implantação do PS por todo o território nacional. Mas também pelas diferentes bases sociológicas de apoio a que apelam. Sem esquecer, claro, as difíceis equações programáticas que se colocam na constituição de uma frente comum com quem defende um vasto programa de nacionalizações, a saída da NATO e políticas incompatíveis com a permanência na zona euro.
Mas talvez a razão mais forte para essa incompatibilidade seja de natureza estratégica. Se o PS passa a estar aberto a constituir um bloco com comunistas de várias variedades, a sua própria razão de ser tal como tem existido na vida política portuguesa deixa de fazer sentido. Nesse cenário, será a própria natureza do sistema partidário português a mudar, entrando o país em território desconhecido. Reafirmo por isso o que escrevi a semana passada: este é mesmo o momento em que todos os socialistas democráticos alinhados com a tradição fundadora do PS não podem permanecer calados e passivos. O que virá depois, ninguém sabe, mas uma coisa é certa: se o frentismo triunfar, o PS tal como o conhecemos desde a sua fundação terá chegado ao fim.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa