1 O tempo de unidade nacional requerida por estes tempos de guerra assenta numa premissa simples: as autoridades seguem uma política de transparência e verdade e os cidadãos confiam nas autoridades. Não quer isto dizer que o Governo tenha que libertar todos cenários em que está a trabalhar mas é óbvio, como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem feito questão de evidenciar, que não pode mentir ou omitir informação fundamental.

António Costa fez questão de ‘mandar às malvas’ essa premissa quando afirmou à TVI a 24 de março que “até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar o que quer que seja” no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Como se não bastasse a carta aberta que os bastonários das ordens dos médicos, enfermeiros e farmacêuticos lhe escreveram dois dias depois a denunciarem a falsidade da afirmação, basta ler este trabalho do Observador e as duas reportagens no Hospital de Santa Maria e no Hospital de São João que o Expresso publicou este fim-de-semana (ler aqui e aqui) para perceber como, além de falsa, a frase foi dita de forma tão despudorada como leviana. E pior andou o primeiro-ministro quando tentou retificar o tiro no Parlamento e insistiu na ligeireza: “eu não digo que não tenha faltado aqui e ali algum bem. O que eu digo é que não faltou nada de essencial”.

Mas vamos a dados e a números. Se os bastonários dos médicos, enfermeiros e farmacêuticos dizem preto no branco que “há escassez de equipamentos de proteção individual”, basta ler os procedimentos de segurança que as duas reportagens no Santa Maria e no São João evidenciam e a descrição do material concreto que falta, como está descrito nesta reportagem do Observador, para perceber como a “racionalização” de material de que falava na semana passada o diretor de infecciologia do Hospital Curry Cabral é um imperativo.

Mas há mais. Daqui a dias, a Unidade de Cuidados Intensivos do Santa Maria vai precisar de 100 médicos e um enfermeiro por doente para um total de 78 camas, avisa o diretor daquela unidade. Neste momento, tem apenas 14 médicos especialistas. E no Hospital de São João, os médicos recordam que não basta “comprar cinco mil ventiladores” — são necessários médicos, enfermeiros e técnicos que saibam trabalhar com eles — e insistem: a taxa de camas de cuidados intensivos por cada 100 mil habitantes de Portugal é de metade daquela que existe na região da Lombardia — a zona de Itália mais atingida pelo pandemia.

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2É um facto, repito o que escrevi aqui, que não houve capacidade de antecipação do Governo sobre as consequências da crise do coronavírus que se iniciou na China em dezembro, como provam a falta de material de proteção individual nos hospitais e a falta de testes que impedem Portugal de aplicar a máxima da Organização Mundial de Saúde de testar o máximo possível. E ainda estamos para ver as consequências da política de cativações de Mário Centeno na redução da capacidade do SNS — matéria que será analisada depois da crise sanitária estar controlada.

Outra matéria em que o Governo continua a correr atrás do prejuízo prende-se com os lares de idosos. Só agora, duas semanas depois de temos iniciado o combate a sério ao vírus, é que os testes nos lares de idosos serão feitos com apoio do Ministério da Segurança Social, revelou este domingo Luís Marques Mendes no seu comentário semanal na SIC.

Onde andou este Ministério da Segurança Social quando era preciso fiscalizar se os lares estavam a implementar os planos de contingência? Porque não foi feita uma coordenação entre ministérios da Saúde e da Segurança Social para que os lares de idosos legais e ilegais fossem um foco de prevenção e de proteção?

Esta crise obriga à manutenção de um contrato social muito forte para que a comunidade cumpra as regras do confinamento e do isolamento social — que se vai prolongar por tempo ainda indeterminado. Por isso mesmo, este é o momento da transparência e da verdade para manter a confiança dos cidadãos no Estado.

Atenta a natureza extraordinária desta crise pandémica, a opinião pública aceitará melhor um primeiro-ministro que assuma falhas e erros, do que um chefe de Governo que insiste em tapar o sol com a peneira. Este não é um momento para habilidades e falsidades.

Ainda por mais quando a situação em termos de infetados está a ficar abaixo das expetativas mas o número de mortos poderá agravar-se significativamente nos próximos dias. Basta dizer que o número de infetados acima dos 60 anos supera os 2.000 casos e que o número total de internados (os casos mais graves) já ultrapassa os 600.

3 Agora, vamos à parte do líder. Não é que os rebates patrióticos, como aquele que António Costa teve contra Wopke Hoekstra, ministro das Finanças da Holanda, sejam a melhor solução para combater uma pandemia que está a paralisar o mundo. Mas o primeiro-ministro português esteve bem em reagir com dureza à proposta ignóbil de Hoekstra em ter sugerido uma investigação à Espanha e a Itália — os dois países europeus com maior número de casos e de mortos na Europa — por não terem conseguido combater com eficácia o coronavírus.

Basta recordar o caso da Áustria, que foi acusada pela Alemanha, Islândia, Noruega e outros países nórdicos, de não ter tomado medidas céleres para encerrar a estância de ski de Ischgl — apontada como a fonte de contágio de mais de 1.000 cidadãos alemães e nórdicos, como se conta aqui — para perceber como o preconceito da proposta de Hoekstra é idiota.

Também o holandês vai defender a abertura de uma investigação ao nível da Comissão Europeia à mais do que evidente negligência das autoridades sanitárias do estado do Tirol? Também o holandês vai defender que a “ganância” (palavra de um jornalista austríaco, não minha) dos empresários que vivem do turismo do ski leve eventualmente a sanções à Áustria? E a Alemanha, a Islândia, a Noruega, a Dinamarca e a Suécia — que foram vítimas da negligência austríaca e que tiveram em Ischgl precisamente a origem dos primeiros grupos de infetados — também vão pedir indemnizações à Áustria? É óbvio que não.

A origem e a sustentabilidade da União Europeia assenta numa palavra: solidariedade.

E solidariedade (ou entreajuda) é coisa que a Itália, por exemplo, não vê da União Europeia desde há muito tempo. Pouco ou nada viu com a crise dos migrantes no Mediterrâneo e, a propósito da crise do coronavírus, começou por levar um autêntico soco no estômago de Christine Lagarde, governadora do Banco Central Europeu.

Portanto, não é de estranhar que o sentimento anti-europeu esteja a crescer a olhos vistos em Itália. As almas progressivas e extremistas mais sensíveis da nossa esquerda gostam muito de cerrar os dentes como Passionaras postiças contra os Berlusconis e os Salvinis mas esquecem-se, como lhes convém, da origem desse sentido. Não é certamente a única, mas uma das principais causas do crescimento das forças populistas tem sido precisamente a omissão da solidariedade europeia.

4 António Costa e o ministro Siza Vieira estiveram igualmente bem ao emendarem a mão nas propostas económicas e retificarem alguns pontos importantes nos apoios às empresas e às famílias, como a simplificação do lay off  e a suspensão do pagamento dos créditos bancários e das rendas.

Contudo, e por muito que se perceba que o primeiro-ministro prefira ter uma política gradualista na aplicação de novas medidas, consoante a evolução da crise e a solidariedade da União Europeia, não se entende como Costa diz que vem aí um tsunami económico mas o Estado não abdica da receita fiscal quer em sede de IRS, quer em sede da taxa social única devida à Segurança Social, para injetar dinheiro nas empresas e famílias. Uma matéria que
inevitavelmente vai colocar-se já em abril — tal como se já colocou nos Estados Unidos, Reino Unido e outros países.

Até porque a União Europeia não deverá agir a muito curto prazo por várias razões:

  • Seja porque as desejadas coronabonds demoram no mínimo um ano a concretizar devido à alteração dos tratados europeus que precisam de ser ratificados pelos parlamentos nacionais — um processo que poderá levantar problemas no parlamento alemão, holandês ou nórdico aprove.
  • Seja porque o empréstimo do Mecanismo Europeu de Estabilidade, a única linha de crédito europeu disponível, implica um programa. Ou seja, o país que recorrer a essa linha ficará numa situação de resgate. Será uma espécie de ‘troika’ composta exclusivamente pela Comissão Europeia.
  • E seja porque a Alemanha e a Holanda e os nórdicos provavelmente nada darão antes de perceberem exatamente o impacto da crise — o que só deverá acontecer em setembro e outubro. Acresce que a Alemanha vai ter a liderança do Conselho no segundo semestre e Angela Merkel, que está de saída do poder, vai querer deixar uma espécie de herança.

Ou seja, e se a União Europeia não aprovar um pacote de ajuda económico robusto, António Costa está por sua conta e risco — o que não augura nada de bom para Portugal. Por muito que os espanhóis queriam inaugurar praças com o nome do primeiro-ministro.