É muito vulgar no nosso país o ponto de vista segundo o qual o Estado tem o monopólio do interesse geral. É insuportável para os políticos de esquerda pensar o contrário. Nunca; se a soberania é apanágio dos partidos que ocupam o governo, é ele o único intérprete do interesse geral. O jacobinismo impera. Aceitar que o interesse geral está fora do governo, diz-se, será ceder aos corporativismos profissionais, aos grandes grupos económicos, aos grandes agrários e a todo um conjunto de fantasmas que assombram a cabeça dos portugueses e que só esperam a oportunidade de por aí avançarem e corromperem a democracia, leia-se; tirar poder ao governo.
Ora, se o interesse geral pertence ao governo significa isso que pertence aos partidos que ocupam o poder. O interesse geral oscila em conformidade com a vontade das sucessivas maiorias e estas, por sua vez, servem apenas para legitimar o governo que delas sai. É aqui que está o perigo.
Se quisermos manter uma democracia saudável não podemos confiar apenas nas indicações do voto e na legitimidade que dele resulta para os governos constituídos ao seu abrigo. É indispensável, por um lado, colocar certas decisões ao abrigo das oscilações da maioria, mais a mais num contexto em que a vontade da maioria depende cada vez mais da opinião induzida pelos media, designadamente pela televisão, que lhe rouba substância e consciência. Por outro lado, é indispensável compreender que o governo e os partidos que nele mandam são apenas uma parcela muito reduzida do interesse geral. Este vai muito para além do governo. O interesse geral é um prolongamento da opinião do público mas este não se reduz ao voto expresso nas eleições. Não se afere apenas pelo que o voto nas eleições lhe possibilita escolher. Há muitos outros aspectos da vida em comunidade que o voto não considera nem pode considerar e também eles importam na consideração do interesse geral. Este não fica de uma vez por todas refém das indicações do voto nem se esgota nelas. Vive para além disso. Está presente numa soma de relações muito mais concretas e existenciais que se desenvolvem no conjunto da vida em sociedade e que se não exprimem através do voto nas eleições parlamentares, europeias e autárquicas. O resultado das eleições não é o único critério do interesse geral. Este não é um bloco unitário resultante das eleições e interpretado pela maioria delas saída; é o resultado de um equilíbrio entre um vasto conjunto de elementos que estão vivos na sociedade civil. Quem pensar o contrário logo resvala para o autoritarismo.
O interesse geral também não é o ideal do esquerdismo nacional com a sua pretensa defesa dos direitos dos «oprimidos», o seu falso ascetismo «revolucionário», a bestunta «superioridade» intelectual e moral dos seus ídolos, arvorados a «homens de princípios», mas logo prontos a massacrar os outros em nome de ideias abstractas e de radicais convicções, sem nenhuma consideração pelas realidades concretas e sem qualquer respeito pela dignidade alheia.
O interesse geral vive na sociedade civil e não fica definido apenas pelo resultado eleitoral ou seja, pelo pouco que os partidos lhe oferecem e para que lhe pedem o voto. Está muito para além disso e não se esgota nisso. As eleições apenas transmitem uma opinião passageira e conjuntural. A sociedade civil não aliena de uma vez para sempre os seus interesses nos partidos. O interesse geral é o interesse de todos e os partidos não representam o conjunto da sociedade civil e mesmo da vida política. Tem de ser repartido entre o governo e toda essa multidão de entidades privadas que constituem a sociedade civil. É este o critério de uma democracia avançada, plural e reflexiva. O interesse geral não é monopólio do governo e dos partidos que deles se apropriam de cada vez que há eleições. O interesse geral é permanente, plural e não unitário. É o interesse de todos e não apenas daqueles que venceram as eleições. De cada vez que vejo um líder partidário vencedor das eleições arvorar-se a intérprete autêntico do interesse geral farto-me de rir; o coitado não percebeu nada. Não admira que o português médio dele desconfie porque sabe perfeitamente que a administração pública portuguesa, que o governo controla, é apenas uma agência de empregos e não uma mandatária dos seus interesses.
É por isso que o interesse das maiorias eleitorais se quiser aproximar-se do interesse geral deve respeitar as diferenças resultantes da autonomia e a vontade de toda uma multidão de entidades privadas que representam também o interesse dos cidadãos. O interesse geral é o dos cidadãos e não o dos partidos e conta com ele. Começa com a ordem gerada por toda uma série de entidades não estatais e não governamentalizadas, quantas mais melhor. O governo não é dono exclusivo da verdade democrática e do interesse dela decorrente. É preciso reconhecer que existem instituições de que o governo não é tutor nem accionista e que prosseguem o interesse geral, contra a tradição jacobina. Mas o jacobinismo é uma característica do sistema político português, como toda a gente sabe.
A partilha da soberania faz-se com o sector privado. Isto é que o sistema político português nunca aceitará. Se já tem dificuldade em ceder à soberania de entidades públicas autónomas, ceder à das entidades privadas é traição. Aceitar uma sociedade civil forte integrada por empresas privadas ricas e dinâmicas, igrejas pujantes e fervilhando de crentes, associações culturais de toda a ordem, instituições de solidariedade social, universidades e escolas privadas, fundações privadas, academias, clubes recreativos e sociais (como alguns, que eu conheço, em que os políticos profissionais felizmente não podem entrar), sindicatos livres e grémios patronais dinâmicos, corporações profissionais activas e tutti quanti… Que pesadelo! Querem substituir o funcionário público pelo membro das associações, a cunha partidária pelo contrato e o instituto pela associação. Que horror! Mão pesada em cima deste pessoal! É necessário rodear tais instituições de uma espessíssima cortina de normas e condicionamentos administrativos de modo a quebrar-lhes toda a iniciativa e esvaziar a perigosa autonomia. O que é preciso é pô-las na dependência do governo, esse profeta que por nós todos vela.
O governo português odeia a sociedade civil. Aceita as regras democráticas mas quer ser o único detentor da legitimidade delas decorrente e seu intérprete exclusivo. O estandarte da soberania é só a lei que, no caso do nosso país, é quase sempre o decreto-lei governamental aprovado em segredo no Conselho de Ministros, às escondidas dos eleitores.
Ora, do que nós precisamos não é de mais governo mas sim de uma sociedade civil a funcionar melhor com boas e claras leis e mais estáveis, educada no bom-senso e na decência, e de uma administração mais comedida, menos poderosa, menos burocratizada e menos intrusiva. Precisamos é de mais contratos e não de mais funcionários.
Uma boa democracia é aquela em que há muitas instituições e poucas leis; uma má democracia é aquela em que há muitas leis e poucas instituições. Plurimae leges, corruptissima respublica, dizia Tácito ou seja; quanto maior o número de leis pior é o governo. Nunca o governo português entenderá isto.