Lê-se e ouve-se muitas vezes gente que pede a António Costa e aos seus ministros que assumam, como se diz, responsabilidade política pelas consequências danosas de algumas das suas acções ou das acções daqueles que directamente deles dependem. Admito que o pedido faça sentido em geral e que constitua parte integrante dos costumes democráticos. Mais: é o que se vê nas democracias com que nos gostamos de comparar, onde essa exigência tem, na maior parte dos casos, consequências manifestas, como demissões e coisas do género. E, indiscutivelmente, seria bom que assim também fosse em Portugal. No entanto, algo por cá se passa, desde que António Costa chegou ao poder, que, dia após dia, torna o pedido um bom bocado gratuito e, de qualquer maneira, destinado, desde o princípio, a não ser satisfeito. E o que se passa tem a ver com a própria natureza política de António Costa tal como os portugueses a conhecem desde que, apesar de ter perdido as eleições para Passos Coelho, formou o seu primeiro Governo.

Qual é, então, a particular característica do seu génio que torna o pedido de assunção de responsabilidades algo de fatalmente condenado ao fracasso? Para o averiguar, nada melhor do que lembrar alguns exemplos de decisões políticas que tomou livremente, em nada coagido por necessidades impostas por qualquer conjuntura particular. A lista poderia ser enorme, mas vou-me limitar a quatro casos bem conhecidos de todos: a decisão de reduzir o horário semanal da função pública de 40 para 35 horas; a opção de reverter a privatização da TAP levada a cabo por Passos Coelho; a eliminação das PPP na saúde; as medidas recentes sobre a habitação, que incluem restrições severas ao alojamento local, com a ameaça subreptícia de uma sua futura interdição, e o arrendamento forçado de casas devolutas.

Não é inútil lembrar as principais consequências destas quatro medidas. Por ordem: uma perda brutal de eficácia dos serviços públicos, com consequências particularmente gravosas no SNS, que a contratação de novo pessoal conseguiu apenas mitigar, acompanhada de muito maiores gastos pelo Estado (isto é, por maiores impostos); aumento exponencial de problemas na companhia aérea, com resultados danosos para os cidadãos, entre as quais a perda de 3, 2 mil milhões de euros gastos na TAP “nossa”, a decisão nunca explicada aos portugueses de reverter a reversão e, entre outras coisas, as presentes trapalhadas que todos conhecem; o estado calamitoso em que caíram os hospitais que funcionavam sob o modelo de PPP, com o inevitável aumento de gastos do Estado (mais uma vez: aumento dos impostos que pagamos) e, sobretudo, a degradação da saúde dos portugueses, que têm de recorrer a hospitais que não conseguem atrair os profissionais de saúde de que necessitam; a mais do que provável – praticamente certa – destruição da fonte de rendimento de muita gente, que não só ajudava outra a ganhar algum dinheiro como contribuía para a melhoria do estado do centro das cidades, completada pelo desrespeito ostensivo pela propriedade privada dos cidadão.

Ora bem, como designar um homem – António Costa – que toma alegremente decisões deletérias que lesam profundamente a vida dos portugueses e que se recusa terminantemente a admitir que erra em quase tudo o que apresenta interesse substantivo para Portugal? Um tipo cheio de azar, a quem o mundo, por sistema, finta as melhores e mais nobres intenções? Um génio incompreendido, um visionário, a quem só o futuro longínquo prestará um dia a devida homenagem? Ou, pura e simplesmente, um irresponsável que, à custa de asneira sobre asneira, se tornou irrespeitável?

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Por mim, inclino-me, é claro, para a terceira hipótese, acrescentando uma outra particularidade: uma personagem de comédia. Com efeito, como notou uma autoridade indisputável nestas matérias, as personagens das comédias, ao contrário das das tragédias, que, num determinado momento, reconhecem a falha trágica que cometeram, são naturalmente incapazes do acto de reconhecimento dos seus erros. Não é, de resto, a única diferença entre umas e outras. Ao contrário das personagens trágicas, pessoas de mérito que possuem caracteres belos e nobres, melhores do que os nossos (por isso o reconhecimento do erro comove os espectadores, que imaginam que o mesmo lhes poderia acontecer), as personagens da comédia, medíocres, possuem um carácter risível, pior do que o nosso, que participa da fealdade pura e simples.

Se António Costa é assim como disse (e penso que é), que sentido faz, verdadeiramente, exigir-lhe responsabilização pelas suas acções? O seu carácter político (é dele que falei) é radicalmente incompatível com a assunção de responsabilidades. Pedir-lhe que deixe de ser irresponsável é pedir-lhe que deixe de ser quem é – que deixe de ser medíocre –, o que, tristemente, costuma ser impossível. Resta que a oposição faça o que deve fazer, esperando que os portugueses se abstenham, por algum tempo, de cultivar o seu tradicional gosto pela comédia, do Pátio das Castigas e congéneres até ao teatro de revista. Ou que, pelo menos, se dêem conta que na política ela não convém excessivamente.

PS1. É raríssimo falar da Igreja, até porque, sendo ateu, não quero meter-me à força na casa dos outros. Mais: não quero que a Igreja pense como eu penso, embora faça um sincero esforço para perceber o seu ponto de vista sobre as coisas do mundo, mesmo quando esse ponto de vista é rebarbativo para muitos. Neste caso da pedofilia, no entanto – e até porque ele diz respeito à sociedade como um todo –, não posso deixar de ficar estupefacto com o que ouvi da boca de D. Manuel Clemente e D. José Ornelas, entre outros. Até consigo concordar com – e levar a sério – D. Januário Torgal Ferreira, o que, apesar dos meus pobres pecados, não merecia. É-me particularmente surpreendente o argumento auto-congratulatório de que a Igreja fez mais do que o resto da sociedade para combater a pedofilia. Não fez e, pelos vistos, não pretende fazer, embora haja obviamente dentro dela muitos que o fazem e farão. Além de que a comparação entre a Igreja e a sociedade parece colocar as exigências morais de uma e outra no mesmo plano. E eu que sempre pensei que a Igreja não tinha exactamente essa ideia de si… Para voltar ao tema do fim do corpo do artigo, a reticência face a um reconhecimento pleno e consequente indica que a Igreja parece querer confundir, com um mau gosto dificilmente qualificável, uma tragédia pura e dura com uma comédia. Saberá o que está a fazer? E, se não souber, espera que alguém lhe perdoe?

PS2. Continuando no trágico e no cómico. Há grandes obras literárias que os fazem correr paralelamente, permitindo-nos experimentá-los simultaneamente, o que é uma lição útil para lidarmos com as nossas tragédias pessoais. O Diário de um Louco, de Gogol, é um excelente exemplo (Kafka também vem facilmente à cabeça). Mas é uma experiência que, em certos casos, podemos igualmente ter na vida quotidiana. Eu, por acaso, tenho-a sempre que vejo o major-general Agostinho Branco, na CNN, a falar sobre a invasão russa da Ucrânia. Por um lado, a sua defesa sistemática da posição de Putin, a custo velada pela pretensão a uma análise puramente militar, pode provocar horror; por outro, tudo aquilo, pela tensão permanente que existe entre o que ele quer dizer e o modo como o pretende dizer – uma espécie de amor que não ousa dizer o seu nome –, é extraordinariamente cómico. É um dos motivos mais tradicionais do riso: vermos alguém que, enquanto fala, faz um esforço perfeitamente óbvio para não poder ser acusado de pensar o que pensa, sem, no entanto, resistir a revelá-lo. Peço encarecidamente à CNN que não o abandone nunca. Até porque basta ouvi-lo duas vezes para ter vontade de gritar: Slava Ukraini! E para, ao mesmo tempo que padecemos com a nobreza do sofrimento dos ucranianos, nos rirmos da mediocridade caricatural dos seus inimigos.