Depois de quase oito anos consecutivos na liderança do governo japonês, o primeiro-ministro Shinzo Abe anunciou a sua demissão do cargo, no passado dia 28 de Agosto, devido a uma doença intestinal crónica que o afeta há anos. Recorde-se que esta foi a segunda vez que Abe se viu forçado a deixar o governo de forma prematura, tendo o mesmo ocorrido em 2007, quando a mesma doença colocou um ponto final no seu primeiro mandato. O que se seguiu foi um período de tremenda instabilidade política, que não só transformou o governo japonês numa verdadeira “porta giratória” de primeiros-ministros, como levou o Partido Democrático a uma vitória inédita nas eleições de 2009, interrompendo o quase monopólio histórico do poder político por parte do Partido Liberal Democrata (LDP – sigla em inglês).

Entre 2007 e 2012, ano em que Shinzo Abe e o LDP regressaram ao poder, o Japão conheceu cinco primeiros-ministros, o Partido Democrático acabaria por ruir entre disputas internas e o país ficou órfão de um projeto político de longo prazo capaz de relançar a economia, recuperar a autoestima de uma sociedade ainda tolhida pelos efeitos do rebentamento da bolha financeira e imobiliária de 1991, e reafirmar a posição de Tóquio no plano internacional perante a ascensão da China e uma Coreia do Norte com armas nucleares.

Ironicamente, mais do que o retorno a um período de normalidade, a estabilidade política que o Japão reencontrou neste segundo mandato de Shinzo Abe deverá ser vista como um caso raro de longevidade política. Desde a fundação do LDP, em 1955, que as peculiaridades inerentes à estrutura do Estado, sistema político e eleitoral japonês fazem com que qualquer novo primeiro-ministro possa aspirar a um mandato com uma duração média de 2,2 anos. De tal modo que, no período do pós-Segunda Guerra Mundial, apenas outros três primeiros-ministros, para além de Abe, governaram mais de quatro anos, o equivalente à totalidade de um mandato parlamentar.

Filho de uma das principais dinastias familiares do regime, a longevidade de Shinzo Abe explica-se pela habilidade invulgar para navegar por entre um conjunto de instituições e fontes de poder, que fazem do sistema político japonês um verdadeiro jogo de sombras. Paralelamente à manutenção de uma imagem popular entre os eleitores, Abe e os membros da sua equipa conseguiram centralizar o poder na sua figura e assegurar o controlo das várias fações políticas que compõem o LDP, bem como das chefias do pesado e influente sistema burocrático japonês. Shinzo Abe conseguiu, ainda, manter boas relações com o poderoso setor empresarial, em particular, os grandes conglomerados industriais que, por razões históricas associadas ao modelo de desenvolvimento económico dirigista e mercantilista adotado pelo Japão no pós-guerra, muito contribuíram para catapultar o país para a posição de segunda maior economia do mundo em 1978.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Apontado pela imprensa local como o candidato da continuidade, Yoshihide Suga foi, na passada quarta-feira, confirmado pela Dieta, designação dada ao parlamento, como o novo primeiro-ministro japonês. Antigo chefe de gabinete de Shinzo Abe, Suga subiu a pulso no partido e provou ser peça fundamental no controlo do aparelho interno do LDP e das suas várias fações. Agora, terá pela frente a difícil tarefa, pelo menos a julgar pelo registo histórico, de manter o poder até às próximas eleições legislativas, a ter lugar já no próximo ano, e a prolongar o trabalho político do seu antecessor.

Continuar o trabalho político de Shinzo Abe será complicado, tendo em conta, simultaneamente, o legado que este deixa em várias áreas da governação e os problemas estruturais que continuam a afligir o Japão, sobretudo a colossal dívida pública (qualquer coisa como 236% do PIB), uma população muito envelhecida e um crescimento económico anémico, que dificulta o financiamento de serviços públicos e sociais (até parece que falamos da Europa).

No plano económico, ficará na memória o pacote de reformas sugestivamente batizado de “Abenomics” para relançar a economia e reverter a deflação. Com resultados pouco convincentes, as medidas adotadas não foram muito diferentes daquelas que a União Europeia viria a aplicar: expansão monetária agressiva, consolidação orçamental e fortalecimento do setor bancário. Acrescem a estas reformas outras, como o incentivo à entrada de mais mulheres na força de trabalho, a melhoria das regras de governação das grandes empresas, ou uma maior abertura, ainda que muito residual, da política de imigração que, num país insular, culturalmente fechado e socialmente conservador, dão nota de algumas transformações políticas e sociais importantes.

A este respeito, e já que falamos de mudanças políticas e sociais, Shinzo Abe deixa o governo sem atingir um dos seus principais objetivos: a revisão do Artigo 9º da Constituição, através do qual o Japão renuncia ao uso da força como direito soberano de resolução de disputas internacionais. Trata-se de um debate antigo, que continua a dividir a classe política e a população japonesa. Além do mais, a sua discussão tende a gerar grande tensão entre os vizinhos de Tóquio, nomeadamente Pequim e Seoul. Para Shinzo Abe, a Constituição de 1946 foi imposta pelas forças de ocupação dos Estados Unidos e impede o Japão de ser um “Estado normal”, na medida em que lhe limita a possibilidade de ter um exército com o direito soberano de iniciar uma guerra. Isto não impediu o Japão de canalizar avultados investimentos para as suas forças armadas que, não obstante a crescente assertividade militar da China, com quem mantém disputas territoriais no Mar da China Oriental, devem manter um carácter exclusivamente defensivo.

Finalmente, talvez o maior legado que Shinzo Abe deixa após estes quase oito anos, e onde Yoshihide Suga parece evidenciar menor experiência, é a política externa. Longe de ser aquele Japão dos anos 80, que parecia pronto a destronar o domínio económico dos Estados Unidos, Abe teve em mãos a difícil tarefa de revitalizar a imagem internacional de um Japão desgastado por lutas comerciais com Washington (a fazer lembrar as guerras comerciais que hoje marcam a atualidade) e um país abalroado por duas décadas de crescimento medíocre, deflação e perda de influência diplomática.

O balanço da atuação de Shinzo Abe no plano internacional é francamente positivo. O testemunho disso é a influência política e económica que o Japão exerce sobre todo o Extremo Oriente e, em particular, o Sudeste Asiático, região onde há décadas se mantém como uma das principais fonte de investimento público, através do financiamento de projetos de infraestrutura, e privado, nomeadamente no setor industrial, financeiro e imobiliário. Para além de fonte de investimento e inovação, o Japão é visto como o parceiro político em que os  Estados-membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) mais confiam. Em contraste com a desconfiança com que este mesmo grupo de nações olha para a China, sobretudo por causa do expansionismo de Pequim no Mar do Sul da China e investimentos que geram dependência política por via de endividamento, esta perceção de confiança em Tóquio é importante, porque o Japão é um aliado fundamental de Washington.

Numa altura em que a União Europeia se preocupa com protecionismo económico, a erosão do multilateralismo e de uma ordem internacional assente em regras, Shinzo Abe tornou o Japão num defensor improvável do comércio livre. Pese embora a dificuldade que qualquer investidor estrangeiro continuará a enfrentar no Japão e a mentalidade mercantilista que ainda orienta a política comercial de Tóquio, a verdade é que Abe foi dos principais impulsionadores da assinatura da Parceria Transpacífico e um dos responsáveis pelo Acordo de Parceria Económica UE-Japão.

Talvez pelo gosto que partilham pelo golfe Shinzo Abe forjou uma relação relativamente próxima com o Presidente Trump que, apesar de arrufos temporários e mal-entendidos que aqui e ali levam diplomatas de um lado e outro ao desespero, é importante para a manutenção do equilíbrio de poder na região da Ásia-Pacífico.

Apesar de não merecer grande atenção no nosso país, a transição de poder em Tóquio ocorre num momento de mudança da estrutura e equilíbrios de poder do sistema internacional. Como potência regional, terceira maior economia do mundo e quarto maior exportador mundial (posição que excluiu a multitude de produtos japoneses produzidos por uma vasta rede de subsidiárias espalhada pelo mundo), o Japão é uma nação indispensável e um parceiro político alinhado, no essencial, com os interesses da UE, Estados Unidos, Austrália, Índia e a própria ASEAN.