Quanto mais os anos passam, mas eu me convenço de que a grande arte da vida adulta é conseguir ser algo mais do que um enorme amontoado de traumas. Traumas que colecionamos conforme vamos vivendo e que vão, inevitavelmente, fazendo parte daquilo que somos. Parece-me que o desafio é ser, basicamente, um ser humano e não uma mera pilha de medos que se agiganta a cada dia.
Conforme correm os anos, maior se torna a nossa lista de dores. Perdas, términos, acidentes e tantos outros tipos de impactos inevitáveis. Espera-se que possamos aprender algo em cada uma dessas vivências – a tal ideia de que o que não mata, de alguma maneira nos fortalece. Mas os aprendizados não sinalizam, necessariamente, a ausência do trauma. São duas histórias separadas.
O desafio está em saber continuar atravessando a rua depois de um atropelamento. Aprender a olhar melhor antes de cruzar a pista, mas não se deixar bloquear pela vontade de não mudar nunca mais de calçada.
O desafio está em conseguir se relacionar outra vez depois de uma separação dolorosa. Aprender com os erros de ambos, mas não se deixar acovardar a cada vez que a possibilidade de se apaixonar cruza o nosso caminho.
O desafio está em conseguir enfrentar a vida depois da perda dos pais. Aprender a deixar que o vazio ocupe o espaço que ele merece, mas não se deixar tomar pela sensação de que não temos condições de enfrentar a vida sem eles ao nosso lado.
O desafio está em conseguir embarcar outra vez num avião depois de um voo com uma turbulência muito forte. Aprender que nunca devemos afrouxar os cintos, mesmo com os sinais luminosos desligados, mas não deixar arranjar desculpas – o trabalho, o preço, a agenda – para não voar outra vez.
O desafio é voltar a comer fruta depois de ter encontrado uma larva dentro de uma delas. Voltar a andar de bicicleta depois de um tombo feio. Voltar a entrar no restaurante que se costumava ir com a ex mulher. Voltar a cantar as músicas que nos fazem lembrar alguém que se foi.
O desafio da vida é saber conviver com a dor, saber limitar o tamanho do medo e saber enfrentar esses pequenos-grandes desafios cotidianos. Os traumas vão existir. A nossa escolha é entre permitir que eles nos definam, moldem nosso rosto e guiem nossos rumos ou encontrar forma de ser mais forte do que eles – sem negar sua existência e relevância. Escolher carregar os traumas na mochila, em vez de sermos a mochila nas costas dos traumas, deixando que eles nos levem para onde quiserem. Me parece que o desafio é esse.