A Guerra dos Cinco Dias foi uma excelente antecâmara para a compreensão de Invasão da Geórgia pela Federação Russa. Os acontecimentos político-militares que se desenrolaram na segunda semana de agosto de 2008 na região oriental do Mar Negro deixam tudo muito claro, tal como descreve e analisa o Professor Armando Marques Guedes. Curiosamente, a Rússia estava a pôr em prática um conjunto de atividades reveladoras daquilo que viria a tornar-se uma nova vaga de expansionismo imperialista, quiçá fora de tempo. A época dos grandes impérios coloniais “modernos”, no que diz respeito aos terrestres teve o seu terminus na segunda década do século passado e, no que toca aos marítimos, um pouco mais tarde, entre a década de quarenta e o fim da década de setenta.
Em 2014, com a invasão e anexação da Crimeia, esta nova vaga mostrou que tinha vindo para ficar. Sem dúvida, desde o fim da Guerra Fria, o Mar Negro foi palco privilegiado de pelo menos uma dezena de conflitos. Alguns exemplos: a ocupação russa da região Transnístria, na Moldávia, a invasão da Geórgia por parte da Rússia, que redundou no aparecimento de duas entidades antes integradas no todo georgiano e a partir daí assumindo-se como entidades em busca de uma autonomia: a Ossétia do Sul e a Abecásia, geradoras de conflitos através dos quais a Federação ab initio assegurou o seu controlo. Curiosamente a reação da comunidade internacional resumiu-se a um típico assobio para o ar; perante esta aquiescência tácita, a ambição expansionista russa subiu de tom. Posicionou nas regiões antes referidas peacekeepers, garantindo assim o seu controlo. A Cimeira NATO (North Atlantic Treaty Organization), que em 2008 teve lugar em Bucareste, na Roménia, com alguma complacência defensiva ofereceu tanto à Geórgia como a uma Ucrânia etno-linguisticamente dividida uma eventual adesão à Aliança – o que foi mal recebido por Moscovo, que, incompreensivelmente, sempre viu a NATO como uma ameaça, postura que se manteve inalterada até aos dias de hoje.
Também com muita relevância, a primeira e a segunda guerras da Chechénia (dentro da Federação Russa, no Cáucaso do Norte), e o atual conflito na Ucrânia, ainda sem fim à vista, que resultou na anexação ilegal de quatro regiões ucranianas novamente por parte do Kremlin. Posso incluir ainda a participação ativa dos Russos no conflito arménio-azeri pela disputa da região do Nagorno-Karabakh.
Esta sucessão de acontecimentos atesta a importância estratégica deste mar: o ponto de confluência das maiores potências do mundo e um (des)encontro entre a Europa, a extensa Ásia e o Médio Oriente, que foi provocando conflitos, sobretudo, entre a Rússia e a Turquia Otomana, e, agora, com participação ativa da União Europeia, Estados Unidos da América (EUA), NATO ou, até, do Irão.
Seguem-se alguns dos episódios mais importantes em sequência cronológica. Entre 1561 e 1696, os czares russos Pedro I, o Grande, e Catarina II, a Grande, empenharam‑se em lograr uma saída para o Mar Negro e dali alcançar o desejado Mediterrâneo, dois mares de águas quentes, fundamentais para uma Rússia cercada de águas geladas, bloqueadoras das ambições imperialistas.
Neste período, assinalo duas notas históricas:
- Para se acercar do sul do Mar Negro, o Czar Ivan IV casou-se com uma princesa oriunda da Cabárdia, uma região vizinha da Ossétia do Norte;
- Já Pedro, o Grande, ao criar São Petersburgo no século XVIII, visou abrir o seu império à Europa, garantindo uma forte presença russa no Báltico. E, na década de 80 desse século, conseguiu capturar, mais a sul, a região do mar Azov, ainda que de forma temporária. O Canato da Crimeia apenas se convertia em território russo com Catarina, a czarina alemã. Estes triunfos em locais estratégicos visavam um desiderato maior: retomar Constantinopla aos Turcos, por forma a libertar os povos ortodoxos do domínio muçulmano – instituindo, assim, um império Ortodoxo e Eslavo que teria Moscovo como a Terceira Roma. Razão pela qual a Turquia, no encetar da Guerra Fria, se tornou num dos membros da NATO. Séculos antes, já Eslavos e os escandinavos Varengues ameaçaram Constantinopla, levando a religião Cristã Ortodoxa, criada à imagem de um “Kievan Rus”, que se transformou num estado imperial e autocrático (a Rússia), ao agregar todas as comunidades políticas que pôde na região, nomeadamente a atual Ucrânia, cujos contornos geográficos se alteraram muito até 1921 – uma Ucrânia inicialmente expandida pela espada, destruindo os Canatos Tártaros sucedâneos dos Khans Mongóis da Horda Dourada, que em tempos dominaram o sul da Rússia.
Avançando no tempo: no Congresso de Viena de 1815, em termos geopolíticos, mais uma vez o Mar Negro tornou-se numa frente geográfica de tensão entre os ditos “Impérios Centrais”: Austro-Húngaro, Russo e Turco Otomano; seguindo-se, em 1871, o Império Alemão dos Prussianos Wilhem I e Bismark, que fundaram e unificaram algumas das comunidades políticas germânicas de uma larga região da Mitteleuropa.
Entre 1854 e 1855, o Mar Negro foi palco de operações militares como o Cerco de Sebastopol, que afrontou britânicos, franceses e turcos às tropas russas imperiais – dando início a um conflito que se tornou conhecido como a Guerra da Crimeia.
Porém, nada ficara consolidado. A Grande Guerra de 1914-1918 constituiu a frente de contacto entre os impérios Alemão, Russo, Otomano e Austro-Húngaro. E todos vieram a colapsar, exceto um.
A Rússia, em 1917, pela mão de Lenin e Trotsky, transformou-se numa entidade Bolchevique, culminando na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Como estado livre, a Ucrânia, provinda do Tratado de Versalhes, de 1919, sobreviveu um ano e meio, tendo sido, em 1921, absorvida pelos soviéticos como parte da Federação. Na Segunda Guerra Mundial, ao ser violado, pelos nazis, o pacto de não-agressão Molotov‑Ribbentrop, o Kremlin de Estaline juntou-se aos Aliados. Todos sabemos o desenlace desta guerra que, na frente ocidental, levou à chamada Guerra Fria: uma cisão entre a URSS e os outros ex-aliados. Este afastamento ou divórcio levou a que, em 1949, a NATO juntasse os Aliados Ocidentais numa oposição firme a Moscovo – que depressa ripostou, criando uma coligação liderada pela URSS, que designou como o Pacto de Varsóvia – com o intuito de responder à NATO.
Assim se consolidou uma Guerra Fria, que iria durar 42 anos.
Moscovo tornou-se a potência dominante na região. Controlava a costa norte, oeste e leste do Mar Negro, com a Roménia e a Bulgária socialistas e estados-membros do Pacto de Varsóvia. Apenas a Turquia, membro da NATO, serviu como contrapeso à União Soviética no Mar Negro, que, ocasionalmente, era referido na época como um “lago soviético”. Esta situação ia mudar. Nas duas décadas que se seguiram à Guerra Fria, com a implosão da URSS, a Rússia temeu perder o seu equilíbrio regional, quando a Bulgária e a Roménia se juntaram à NATO. Mais tarde, em 2008, a Geórgia e a Ucrânia declararam a sua intenção de aderir à Aliança. Na Cimeira da NATO, realizada em Budapeste, foi aceite essa pretensão, sem, no entanto, se declarar datas.
Este frágil equilíbrio entre os dois blocos desfez-se no final da Segunda Guerra Mundial, quando as tensões aumentaram entre a União Soviética e a Turquia, ao tentar alterar a Convenção de Montreux, pressionando Ancara no sentido de os soviéticos partilharem o controlo sobre o Bósforo e Dardanelos. Conhecida como a Crise do Estreito Turco de 1946, a União Soviética aumentou a sua presença militar no Mar Negro para “dissuadir” Ancara de aceitar bases militares em solo turco. Na tentativa de se proteger da pressão soviética, a Turquia pediu ajuda aos Estados Unidos, que responderam enviando navios de guerra para a região. Embora a União Soviética tenha eventualmente recuado, o incidente foi um catalisador para a Doutrina Truman de 1947, que procurou, entre muitas outras pressões diplomáticas e militares, conter uma crescente ameaça soviética no Mediterrâneo, recrutando, em 1952, a Turquia e a Grécia como membros da NATO. Nesta fase da Guerra Fria, houve um equilíbrio inquieto no Mar Negro entre a Turquia, a NATO, os Estados Unidos e a União Soviética – mas com tensões crescentes entre a Grécia e a Turquia.
Para a Rússia, os fatores geoestratégicos da região do Mar Negro pouco se alteraram desde 1853, e apenas a NATO, onde os EUA assumem papel preponderante, veio substituir os estados individuais como principal concorrente na região. Daqui ressalta a Crimeia como um centro de gravidade militar da bacia, com destaque para a função de pivô da Turquia que, com os seus estreitos, protege estrategicamente a ligação entre os mares Negro e Mediterrâneo.
Sem sucessos relevantes, Moscovo tem vindo a atuar, tanto material como simbolicamente, como uma “grande potência” apostada em “equilibrar” forças com o adversário. Note-se, noutros lugares, a propensão da Rússia para este tipo de gestos emblemáticos de retaliação típica nos relacionamentos entre great powers. Uma reciprocidade ocorreu também – com a pompa e circunstância de um anúncio público, pelas autoridades russas e sírias – com a reativação de uma antiga base soviética, a de Tartus, na sua linha de costa do Mediterrâneo Oriental. O mesmo Mediterrâneo que alberga os navios norte-americanos que entraram no Mar Negro em agosto de 2008.
Saliento que Moscovo “justificou” as guerras com a Geórgia, em 2008, e com a Ucrânia, em 2014 e 2022, como “necessárias” para evitar que o equilíbrio estratégico pendesse decisivamente a favor da NATO. Ou seja, qualquer país que tentasse uma integração na Aliança Ocidental, e também reafirmando o seu poder nos outros ex-estados soviéticos, sofreria represálias por essa aproximação “proibida” a uma Aliança inimiga. As agressões russas contra a Geórgia e a Ucrânia tornaram evidente que Moscovo avançaria para uma guerra no intuito de impedir que qualquer outro ex-estado soviético (além dos países bálticos, que se juntaram à NATO em 2004) a ela se unissem.
De uma perspetiva mais geopolítica, a modernização tanto em efetivos como em equipamentos da esquadra russa no Mar Negro pela pressão na Transnístria e na Crimeia efetivou-se. Os acordos militares russos celebrados com a Síria, envolvendo o anúncio da reativação da base naval soviética, a Tartus, uma base eletrónica em Latakia e uma nova base aérea, fizeram soar os alarmes. Tudo isto a acrescentar aos movimentos de reorientação e de realinhamento cada vez mais nítidos a uma Turquia ambivalente e apostada numa ligação histórica com a Ásia Central, incluindo uma aproximação relativamente à Arménia e uma intensificação de laços com o Azerbaijão, ambos a leste do Mar Negro.
Para além das questões de abastecimento, existe o projeto Nabucco. Moscovo planeava a construção do seu South Stream, desenhado para atravessar 900 quilómetros de leito marítimo do Mar Negro desde Beregovaya, na costa russa, até à Bulgária ou à Roménia, continuando daí até à Grécia, via Sérvia, e depois até à Itália. E sabendo-se da proximidade de Putin com sérvios e Berlusconi…
Mais. Com foco no gás natural, a Turquia importa da Rússia sessenta por cento das suas necessidades, acrescido de trinta por cento de petróleo. Desde 2003, o gás chega à cidade turca Samson por via do Blue Stream, um oleoduto que corre sobre o leito do Mar Negro desde Izobilnoy, no sul da Rússia. Essa dependência, acrescida de uma balança comercial positiva, favorece a sobremaneira Moscovo.
Na Cimeira Energética realizada em Baku, em novembro de 2010, que reuniu chefes de Estado e de Governo de países do Mar Cáspio, do Mar Negro e do Báltico, os turcos celebraram um acordo com o Irão, comprometendo-se a construir três jazidas offshore a sul do Irão, assim como garantindo a construção de um gasoduto com uma ligação de Assaluyeh a Bazargan, percorrendo o seu território de norte a sul.
A aparente capacidade e talento que Moscovo tem revelado em abrir uma nova frente de tensão nesta região tão sensível não podem nem devem ser ignorados. As intenções políticas do Kremlin são claras. Tendo presentes as imagens dos bombardeamentos estratégicos (símbolos fortes de uma hipotética capacidade recuperada de projeção russa), que Medvedev tinha já feito alarde ao tentar intervir na Venezuela no plano simbólico, note-se que – decerto ofendida pela presença, em agosto de 2008, de navios militares norte-americanos no Mar Negro, enviados para efeitos de ajuda humanitária, “mas armados com sistemas de mísseis de última geração”, como o presidente russo fez questão de sublinhar – Moscovo fez ponto de honra em organizar exercícios militares navais conjuntos com a Venezuela, nas Caraíbas, intitulados VenRus 2008.
Mas, em boa verdade, atualmente, o Mar Negro e a pretensão de continuar a ocupar a Crimeia, justifica-se com uma constante necessidade imperialista e de controlo da Ucrânia. A garantia ao acesso ao “Mar quente”, é assegurada pela região de Krasnodar e do porto de Novorrosiysk em larga escala. “Será o Mar Negro uma banheira para a frota russa?” – questiona o nosso querido historiador José Milhares, pondo em causa o seu poder geoestratégico nos dias de hoje.
Passaram 10 meses desde que teve inicio a (in)esperada invasão à Ucrânia, uma guerra com altos contornos de ilegalidade e terrorismo e sobre a qual, Putin continua a afirmar convictamente, que não perderá nas suas pretensões, e está a tentar, com marcado insucesso, assumir o controlo da Ucrânia, com atos bárbaros indescritíveis e que ficarão inscritos na História do século XXI. De torturas, a violações de mulheres, a mortes de milhares de civis, muitos deles crianças indefesas, à separação de famílias, aos cortes sistemáticos de distribuição de cereais aos povos mais carentes noutros continentes, ao ataque a infraestruturas imprescindíveis à sobrevivência, a Rússia de Putin demonstra uma cruel frieza e um desprezo total pelo ser humano. Apraz-me citar Primo Levi, detido pelas forças alemãs em 1943 e posteriormente deportado para Auschwitz, com o título de um dos seus livros, que nos marca para sempre – “se isto é um homem”.
“Para que a terra não esqueça”, um dia serão escritos relatos destes acontecimentos por sobreviventes, tal como aconteceu no Holocausto de Hitler, como se seis milhões de mortos não chegassem, alguns deles da família de Volodymyr Zelensky.
Um agradecimento muito especial pelos ensinamentos, para a construção deste artigo: Professor Armando Marques Guedes; Major-General Isidro de Morais Pereira; Historiador e o seu último livro, José Milhazes