No domingo de Páscoa, num lar para idosos (no Algarve, creio), decidiu-se, contra as indicações da Igreja, dar a beijar um crucifixo a um grupo de pessoas. As imagens passaram nas televisões, que censuraram o facto. Inquirida sobre a razão da violação dos conselhos da Igreja, uma responsável do lar explicou que tinha querido dar um “miminho” aos velhinhos.
Graças à triste segunda figura do Estado (meu Deus, a segunda figura do Estado!), Ferro Rodrigues, a Assembleia da República terá também os seus “miminhos”. Não por causa da ressurreição de Cristo, em que os católicos, maioritários em Portugal, acreditam, mas por causa da ritual ressurreição do 25 de Abril de 1974, na qual praticamente ninguém vê mais do que uma formalidade piedosa, a que, como em tantos outros casos, dedica, quando muito, uma atenção distraída.
Mas Ferro Rodrigues lá receberá, no espaço apertado da AR, os miminhos por que tanto anseia e que a si mesmo concede. Não serão as 130 pessoas que ambicionava, mas uns números abaixo, consequência da redução dos deputados presentes e dos convidados que, como os ex-presidentes Cavaco Silva e Jorge Sampaio, recusaram comparecer à, no presente contexto, lúgubre e extemporânea festividade.
Praticamente ninguém na AR, com a excepção do pequeno CDS, da Iniciativa Liberal e do Chega, protestou contra a coisa que, com as sucessivas declarações de Ferro Rodrigues, se transformou numa patente obscenidade. Em particular, o PSD de Rui Rio não protestou, talvez por considerar a discordância pouco “patriótica”, ou, pior, pouco “ética”. Ou será que o discurso de Ferro Rodrigues é visto como convincente? Será que o PSD também acha que emitir reservas sobre este tipo de celebração, nos dias que vivemos, é coisa de “saudosistas, anti-parlamentares ou seguidores de fake news”? E que “há muita gente mascarada de abrilista durante estes anos todos que deitou agora as garras de fora”? Acha que esta lista própria de um sonâmbulo que junta as primeiras palavras que lhe vêm à cabeça e o vocabulário das “garras de fora” correspondem sequer à sombra de um pensamento? Ou crê que a justificação da celebração como sendo uma maneira de “dizermos que da crise que vamos continuar a viver não sairá qualquer alternativa anti-democrática”, com contornos “populistas e fascizantes”, tem ponta por onde se lhe pegue? Ou então, para falar como Manuel Alegre, que os protestos que se fizeram ouvir têm origem numa atitude “de mau gosto e hipócrita”, própria àqueles que “no fundo não querem que se celebre o 25 de Abril”?
Escrevi “obscenidade” porque é exactamente disso que se trata. No princípio, a ideia desta comemoração era apenas muito discutível. Com efeito, no contexto de um estado de emergência em que o isolamento se tornou a condição normal das nossas vidas, é muito natural que a aglomeração projectada para a AR apareça às pessoas, com razão ou sem ela, como contradizendo em absoluto tudo o que várias vezes ao dia nos é recomendado pelo governo e, sobretudo, como uma demonstração da excepção que o poder reivindica para si mesmo. É como se duas realidades por inteiro distintas e inconfundíveis surgissem de súbito face a face: a “nossa” e a “deles”. Raras vezes algo terá contribuído de forma tão decisiva para a sensação de distância entre “nós” e “eles”, os cidadãos e os seus representantes. Mas foi apenas o princípio.
Porque depois vieram intervenções em catadupa de Ferro Rodrigues, cada uma mais grotesca do que a anterior. Pode-se atribuir o delírio do personagem ao seu natural e abundantemente provado sectarismo. Mas não chega. Pode-se lembrar a sua suposta tendência para a boçalidade. Mas não chega. Pode-se pôr a coisa na conta de um desejo irreprimível de celebrar a sua juventude “abrilista” e a glória que se atribui por ter vivido os momentos que viveu. Mas não chega. Pode-se conjecturar uma angústia existencial face à não realização plena e detalhada de um ritual, não realização essa que, abalando a ordem do mundo, traria consigo desastre certo. Mas não chega. Há muitas suposições que podem ser feitas para explicar a vertiginosa sucessão de declarações delirantes de Ferro Rodrigues, mas cada uma delas deixa-nos insatisfeitos. Curiosamente, aquela que aparenta possuir maior poder explicativo é, no fundo, a mais simples, tão simples que uma pessoa quase hesita em alvitrá-la. É que, pura e simplesmente, Ferro Rodrigues parece empenhado em mostrar que não possui os meios intelectuais necessários para ter uma percepção minimamente distinta da realidade.