Em 1947, Harry Truman fez um discurso que viria a mudar a história do Ocidente. Esse discurso ficou precisamente conhecido como Doutrina Truman. O presidente anunciava que, por falta de poder militar da Europa para fazer face à ameaça comunista, os Estados Unidos passariam a ser os líderes do “mundo livre”. Ainda que vários membros da administração Truman não estivessem de acordo, passado pouco tempo criava-se a NATO, uma espécie de um por todos e todos por um, ou seja, um chapéu de chuva de segurança em que se um estado sofresse uma invasão, os outros todos teriam de ir em seu auxílio. Nasceu, quase por emergência, o berço da aliança das democracias, que teve muitos momentos pouco pacíficos entre os seus membros, mas resistiu até à eleição de Donald Trump.

Biden também quer começar de novo. Também se autointitulou líder do mundo livre, mas de um mundo livre mais vasto geograficamente que tem a China como principal ameaça. É esta a mensagem que vem trazer no seu périplo europeu que começou na quarta-feira e tem paragens na Grã-Bretanha, em Bruxelas e em Genebra. Mas o sucesso está longe de ser garantido.

Poderíamos falar de muitos aspetos desta viagem. Mas prefiro centrar-me num: a relação transatlântica que vai ser debatida nas cimeiras com a União Europeia e a NATO. A primeira servirá para debater a relação comercial e tecnológica entre os dois lados do Atlântico. A segunda está relacionada com a segurança. As cimeiras estão separadas mas os assuntos são indissociáveis. Biden vem tentar convencer os europeus da sua estratégia todos-contra-a-China. E para que a Europa mude de ideias da sua posição reticente e da sua vontade de autonomia estratégica, os incentivos terão de ser verdadeiramente aliciantes.

Biden terá de lidar com três problemas: em primeiro lugar, ainda que a Europa e alguns estados europeus tenham endurecido o seu discurso (desde 2019) e até a sua prática política em relação a Pequim – nomeadamente com as recentes sansões económicas por abusos dos direitos humanos – a perceção da ameaça não é a mesma na Casa Branca e nas chancelarias europeias. Se a administração americana se tem esforçado para bipolarizar este conflito, numa lógica democracias vs. autocracias, este tipo de clivagem não convence a Europa. A ameaça chinesa, mal a meu ver, ainda está muito longe do imaginário europeu.

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Em segundo lugar, por mais promessas e boas intenções que o presidente norte-americano tenha – e não me parece que esteja a exagerar quando diz que a relação transatlântica é o centro da sua política externa, o que não acontecia há exatamente 20 anos –, a Europa tem razões para estar desconfiada. O total abandono a que Donald Trump sujeitou os parceiros europeus deixou marcas profundas que só o tempo e a reconstrução da confiança podem apagar. Qualquer sondagem mostra que a mudança de presidente não foi suficiente, nem mesmo depois do discurso enfático da Conferência de Munique deste ano.

Em terceiro lugar, já existe, efetivamente, dependência económica da China, pelo menos por parte de alguns países europeus – inclusivamente Portugal, visto Pequim deter ativos centrais para o funcionamento da nossa economia. Além disso, há interesses económicos das potências europeias. A ambição que liga estes países ao mercado chinês e o facto de a China ser o maior produtor de terras raras, cruciais para a transformação para uma economia verde – o grande objetivo atual da Europa – traz consigo uma certa benevolência relativamente ao regime de Xi Jinping. Benevolência essa, já se disse aqui, que tenderá a ter consequências gravíssimas para a Europa.

Assim, vão-se encontrar velhos aliados com dilemas diferentes para resolver: Biden precisa da Europa para ser líder do mundo livre. A Europa precisa dos Estados Unidos para garantir a sua segurança, mas ganhá-la significa abdicar de princípios políticos implementados na ausência dos Estados Unidos e sem garantias que a América regressou para ficar.

Era importante que Biden lembrasse aos europeus que as “férias da História” já há muito acabaram. Que lhes trouxesse incentivos e garantias. Porque, caso contrário, o mundo livre pode deixar de existir rapidamente. E, quer queiramos quer não, a primeira baixa será a Europa, impreparada para competir num mundo de grandes potências.

Era importante que os líderes europeus percebessem que, apesar de tudo, a sua melhor hipótese são os Estados Unidos. Que a NATO lhes dá a oportunidade de não terem de investir na sua defesa a partir do nada, independentemente de quem venha a seguir a Biden – já que as estruturas podem ser autónomas. Era importante que percebessem que sem segurança não há prosperidade que nos valha.

Era importante que o encontro dos velhos aliados se saldasse no início de um entendimento em que a política, a segurança e a democracia voltassem a estar na base das relações transatlânticas. Se há vinte anos só a Europa precisava verdadeiramente disso, agora os Estados Unidos também precisam da Europa. E esta pode ser uma pequena janela de oportunidade que, uma vez desaproveitada, pode não se voltar a abrir.

Biden não é Truman. Mas ambos os presidentes tentaram criar políticas adequadas a novas eras da política internacional. O primeiro para a transição de poder em curso. O segundo para a Guerra Fria. Era importante que o passado nos servisse para pensarmos o futuro. O imediatismo é um conselheiro perigoso.