1 “O que temos conseguido demonstrar desde as últimas eleições legislativas não foi só ter acabado com o ‘arco da governação’, foi ter conseguido derrubar o último resquício do muro de Berlim”. A frase é de António Costa e foi repetida ad nauseam desde 2015 — e, apesar da queda do Governo pelas mãos do seus parceiros, ainda hoje é dita por Costa.

Deixando lado todo o contorcionismo histórico que a alusão ao muro de Berlim comporta na boca de António Costa, o que me interessa abordar é precisamente um outro muro que o líder do PS construiu com a sua geringonça: o muro que impede o diálogo entre os moderados porque ao promover uma aliança com as forças extremistas do PCP e do Bloco de Esquerda, deixou de ser possível aos socialistas dialogarem de forma estrutural com o PSD e outras forças da direita moderada como o CDS ou a Iniciativa Liberal.

É claro que tudo começou com a diabolização do Governo de Passos Coelho por parte de António Costa — e, consequentemente, do diálogo construtivo que se estabeleceu entre aquele Executivo e o PS de António José Seguro. Como bom político (ou politiqueiro), Costa viu ali uma boa oportunidade de atacar Seguro e conquistar apoios internos no PS. Daí que tenha rasgado todos os acordos feitos entre Passos Coelho e Seguro mal chegou ao poder no PS.

A geringonça foi só a oficialização da diabolização do diálogo entre as forças moderadas do PS e do PSD. Esse foi o muro construído por António Costa — e do qual está agora refém. Parece que só a maioria absoluta o salvará.

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2 Este ano tivemos em forma de livro um bom exemplo desse diálogo vivo entre os moderados: “As Sete Estações da Democracia” (Dom Quixote) de Maria João Avillez. A autora ‘coloca’ Marcelo Rebelo de Sousa a falar sobre o seu quase irmão político António Guteres, Paulo Portas a analisar sem fel (bem pelo contrário) os mandatos presidenciais de Marcelo, Durão Barroso a mostrar como a direita deve assumir sem complexos o legado de Cavaco Silva, José Miguel Júdice num lúcido escrutínio de António Costa (“o oportunista-mor do reino” é todo um tratado) e Santana Lopes a abordar o seu ‘pai’ político Francisco Sá Carneiro.

Todos os retratos — nascidos de entrevistas conduzidas por Maria João Avillez — são úteis, sérios e muito informativos, nomeadamente para as gerações mais novas que não viveram os ciclos históricos analisados.

Os retratos que me interessam mais para o efeito deste artigo são aqueles feitos por dois socialistas — e que dão um tom claramente contra-corrente à obra face ao muro erguido por António Costa. Refiro-me à análise sem preconceitos ideológicos de Francisco Assis sobre o legado político dos governos de Pedro Passos Coelho e à retrospetiva extraordinária que Sérgio Sousa Pinto faz da carreira política de Mário Soares — e não apenas dos últimos anos da sua vida que tanto jeito dão à extrema-esquerda.

3 Começando por Assis e por um ponto prévio claro: deve ser a primeira análise honesta de um socialista sobre o Governo de Passos Coelho. Em primeiro lugar, porque, apesar de contextualizar a crise financeira de 2009/2010 como mundial, não deixa de assumir a responsabilidade própria de José Sócrates na chamada da troika. E, por outro lado, porque recusa os dogmas que António Costa tentou vender ao país como bom “oportunista-mor”: que Passos destruiu (ou tentou destruir) o Estado Social, que Passos só queria que o Diabo chegasse para ir mais longe que a troika, que o crescimento económico iniciou-se em 2016 (e não em 2014)…

Enfim, Assis rejeita de forma clara a “demonização absoluta” de Passos Coelho e do seu legado. Porquê? Porque “não serve ninguém”.

Ou seja, a radicalização de um partido que sempre foi moderado como o PS não serve o país porque corta pontes e canais de comunicação com os adversários políticos. Mas serve quem quer destruir o rival para acumular poder — e impedir que a alternativa democrática óbvia ao PS se reconstitua e se posicione para quando o ciclo político mudar.

4Para os jovens do PS que andam no Twitter entusiasmados com as políticas identitárias e com a radicalização da linguagem política promovida por António Costa, que adorariam ver Pedro Nuno Santos e João Galamba a imitarem Catarina Martins e Mariana Mortágua e que pensam que ser liberal ou conservador é sinónimo do fim do Estado Social e de colocar crucifixos nas escolas e nas repartições públicas — para esses jovens impressionáveis será muito estranho ouvir Sérgio Sousa Pinto a definir Mário Soares com uma palavra simples mas poderosa: “liberdade”.

Será mesmo muito estranho para aqueles jovens perceber que Soares lutou contra Salazar mas também se opôs a Álvaro Cunhal e ao PCP e a todos os partidos (UDP, LCI/PSR e outros grupúsculos semelhantes) que vieram dar origem ao atual Bloco de Esquerda.

E é precisamente esse o lado mais interessante da abordagem de Sousa Pinto: recordar que foi Soares quem impediu no Verão Quente de 74/75 que os comunistas e a extrema-esquerda militar mudassem a roupagem da ditadura para um vermelho vivo com foice e o martelo amarelo. Precisamente por isso, Soares é sinónimo de democracia, de pluralismo e de tolerância.

Esse exercício não é apenas histórico ou retrospetivo. Pelo contrário, e como Sousa Pinto tem dito de forma consistente nos últimos anos, há aqui uma forte ligação ao presente político. Não só pela Geringonça e o seu presente momento de auto-destruição mas também porque alguns dos comentadores atuais mais influentes do espaço público têm precisamente origem nesse pensamento extremista.

Por outro lado, Sousa Pinto recorda que Soares percebeu desde o início que a democracia só faria sentido se fosse aliada e promotora da prosperidade económica de um povo que, apesar dos avanços económicos do marcelismo, viveu os primeiro dias de liberdade em 1974 em pobreza e iliteracia generalizada e com baixos índices socio-económicos. E foi por essa prosperidade que Soares lutou, defendendo a economia de mercado contra a economia planificada e dirigista que a extrema-esquerda sempre defendeu.

Tudo isto junto serve para Sousa Pinto denunciar uma “aldrabice histórica”: a de que o PS é agora um “verdadeiro partido de esquerda” quando “foi justamente contra” o PCP e as forças que deram origem ao BE que o “PS afirmou a sua fortíssima identidade de partido socialista e democrático”.

Mas também leva o socialista, o que não é de somenos, a recordar o “patriotismo” demonstrado pelo PSD em 1984 quando se aliou ao PS de Soares para constituir o Governo de Bloco Central que aplicou o segundo resgate da democracia.

5 O que Assis e Sousa Pinto nos dizem é que o pior erro de António Costa e da sua Gerigonça foi precisamente a radicalização política. O regresso do “lado certo da história” e da ideia de que a direita é sinónimo de ideias maléficas que visam destruir as conquistas sociais da democracia.

Assis e Sousa Pinto estão à frente do seu tempo em termos de partidários — o que, em política, nem sempre é positivo. Os dois já têm razão hoje quando dizem que o modelo económico está esgotado e que “ou mudamos ou acabaremos numa Suécia fiscal implantada numa Albânia económica.” E por isso mesmo defendem (como muitos outros na sociedade civil) um diálogo reformista entre as forças moderadas.

Enfatize-se que tal não significa um Bloco Central. Implica, sim, uma interação entre PS e PSD (e outras forças moderadas) que permita construir soluções estruturais que contribuam para uma nova fase de prosperidade que nos faça crescer claramente acima da média europeia. Só assim o centro-esquerda e o centro-direita deixarão de estar sequestrados pelos radicais.

O problema é que o PS só lhes dará razão daqui a uns anos e só depois de António Costa e do seu natural sucessor Pedro Nuno Santos se esgotarem politicamente.

Na realidade, Maria João Avillez acabou por fazer um exercício premonitório. Por muito que ainda possa demorar a chegar, o país necessita como pão para a boca de um diálogo construtivo entre as forças moderadas. Só assim é que o centro político se conseguirá reinventar.

6 Uma última palavra sobre Maria João Avillez. Carlos Gaspar retrata-a muito justamente como a “cronista da democracia” devido à qualidade, relevância e consistência do seu trabalho desde 1974/75. Acompanhou (e em lugar privilegiado) o período revolucionário. Conheceu de perto os pais fundadores da democracia (Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral), além de Álvaro Cunhal. Relatou como poucos as diferentes fases de desenvolvimento do regime democrático e escreveu os três livros mais importantes sobre a vida política de Soares baseados em entrevistas/conversas que qualquer estudante de jornalismo deveria ler com toda a atenção.

Teve, e tem, todo este sucesso com uma prática jornalística muito pouco comum em Portugal. Assumindo perante as fontes a sua visão sobre o país mas sem nunca ceder um milímetro na sua independência e imparcialidade. Num país em que as diferentes gerações jornalísticas continuam a ver como um problema que os jornais assumam de forma transparente pensamentos e visões ideológicas claras perante os leitores, isso não é coisa pouca.

E é o melhor elogio que se pode fazer ao trabalho de Maria João Avillez.

Um Bom Ano Novo com saúde e sucesso para todos os leitores.

Texto alterado às 17h26m