Depois da bancarrota de 2011, imposta ao país pelas mesmas famílias socialistas que hoje ainda nos regem, o medo em Portugal passou a ter uma cara: a do programa da troika. Sempre que a economia desacelera, as bolsas caem, ou os juros sobem na América, é isso que vagamente se receia: o regresso da troika. Este medo tem duas faces. A primeira é realista, a segunda é uma ilusão. A face realista tem a ver com a consciência de que, embora a conjuntura tenha mudado, pouco mudou estruturalmente: os turistas desembarcam, mas a nossa dívida cresce e o Estado continua a constranger-nos com a sua burocracia e os seus impostos. A ilusão tem a ver com outra coisa: a ideia de que, se tudo correr mal, não será pior do que da última vez. Como se, durante estes oito anos, nada tivesse acontecido e o mundo continuasse na mesma.

O facto, porém, é que aconteceu muita coisa: o Brexit, o Syriza, Donald Trump, Matteo Salvini, a Alternativ fur Deutschland, etc. Sim, Angela Merkel ainda lá está, mas derrotada e com sucessor à vista. Podemos tratar tudo isso como uma mão cheia de episódios avulsos. Ou podemos ver nessa sequência o princípio do fim daquele mundo em que, durante anos, fizemos défices e dívidas sem outra preocupação senão a de receber um puxão de orelhas da Comissão Europeia ou, no pior cenário, uma visita da troika, a pedir-nos que moderássemos os gastos em troca de mais empréstimos.

O mundo está hoje menos “internacionalista” do que há oito anos. Com Trump, mas já antes dele com Obama, os EUA deixaram de esconder a impaciência com o papel de polícia do planeta. Com o referendo do Syriza na Grécia, a crise migratória de 2015, o Brexit, o desafio de Salvini em Itália ou os coletes amarelos em França, algo se deslassou na maionese integracionista europeia. É verdade: o euro continua a existir, o Syriza acabou por cumprir os tratados, Salvini recuou nas provocações, e ainda nem sabemos se o Reino Unido vai mesmo sair. Mas parece muito óbvio que não será fácil um governo europeu pôr os seus cidadãos a fazerem sacrifícios pela Europa, mesmo que o interesse do país seja esse. Os “populistas” disciplinaram o integracionismo ilimitado dos anos 90, quando o governo de Kohl pôde obrigar os alemães a renunciar à sua moeda ou quando, sempre que um país votava contra Bruxelas, bastava obrigá-lo a votar outra vez. Ora, o resgate português de 2011 pertence a esse mundo pré-Brexit e pré-AfD. E se da próxima vez não houver troika como em 2011?

O nosso regime assenta, desde 1976, na premissa da solidariedade e unidade do Ocidente, tal como existiu durante a Guerra Fria e ainda nos anos 90. Era um mundo em que também havia egoísmo e impaciência, mas em que a causa da coesão prevalecia sempre. Em 1975, talvez Kissinger não se tivesse importado de usar Portugal como vacina contra o eurocomunismo, mas Carlucci não deixou um aliado da NATO tornar-se uma Cuba europeia. Os dez países da CEE demoraram muito tempo a integrar Portugal, mas nunca houve dúvidas de que o fariam. A nossa oligarquia habituou-se a confiar no enquadramento internacional para se dispensar de garantir o regular funcionamento das instituições ou o crescimento sustentado da economia. Ainda se lembram de quando nos explicavam que, com o euro, o défice externo já não tinha importância? Afinal tinha. Bastará, para estarmos descansados, a expectativa de que a “Europa” intervirá sempre que houver dificuldades? Que será do regime se o 112 da integração internacional falhar ou não funcionar como esperado? Estamos na mesma num mundo que já não é o mesmo: eis o que pode, um dia, ser o princípio de um grande sarilho.

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