Quando, recentemente, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América (EUA) negou a existência de um suposto direito constitucional ao aborto, o Presidente dos EUA, Joe Biden, emitiu uma ordem executiva que promove a sua prática.

Que o Presidente dos EUA seja a favor da ‘interrupção voluntária da gravidez’ é uma questão que interessa aos cidadãos desse país. Mas, que o católico Joe Biden incentive o aborto é um assunto que diz respeito a toda a Igreja.

Joe Biden já tinha sido notícia pelo facto de, por este motivo, lhe ter sido negada a comunhão eucarística, quando ainda era vice-presidente dos EUA. Quando foi recebido pelo Papa Francisco, a 29 de Outubro passado, afirmou que este lhe teria dito que era um bom católico (!) e que podia continuar a comungar (!). Essas alegadas declarações, que causaram escândalo nos ambientes católicos, não só nunca foram confirmadas pela Santa Sé, como parece terem sido agora desmentidas pelo próprio Papa.

Com efeito, em recente entrevista ao canal de streaming “ViX de Noticias Univision 24/7”, Francisco foi questionado sobre este caso. Às jornalistas mexicanas Maria Antonieta Collins e Valentina Alazraki o Papa remeteu a questão para a consciência de Joe Biden, a quem deu o seguinte conselho: “Que fale com o seu pastor sobre essa incoerência”.

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Como não podia deixar de ser, o Papa considera uma incoerência um católico defender o aborto e receber a comunhão eucarística. Sobre esta matéria, pouco antes, nessa mesma entrevista, Francisco tinha recordado que, “um mês depois da concepção, já existe o ADN do feto, que já tem alinhados todos os seus órgãos. Há vida humana. É justo eliminar uma vida humana?”.

O aborto é, à luz da fé, um gravíssimo pecado e, em termos científicos, uma aberração, porque, desde a concepção, o feto é um ser humano. Mesmo no horrível caso da violação e gravidez de uma menor, não é aceitável o não menos horrível assassínio da criança concebida. Segundo a Associated Press, já a 10-10-2018 o Papa tinha dito que, “interromper uma gravidez é eliminar uma pessoa. É justo eliminar uma vida humana para resolver um problema?!“.

Desde sempre, a Igreja católica condenou o aborto, que o Concílio Vaticano II considera, a par do infanticídio, um crime abominável. Também o Código de Direito Canónico é explícito a este propósito: quem, consciente e voluntariamente, fizer um aborto, incorre em excomunhão latae sententiae (cânone 1398), ou seja, automática. A excomunhão é a expulsão da Igreja, a que só poderá regressar quem, estando arrependido, obtenha da competente autoridade eclesiástica a absolvição do pecado cometido e cumpra a correspondente penitência.

Que a questão do aborto seja do foro da consciência de cada pessoa não quer dizer, como é óbvio, que cabe ao sujeito decidir a moralidade do acto. Provavelmente, muitos dos serial killers agiram de acordo com as suas consciências, o que não justifica os seus crimes. Há actos que são sempre injustos, com independência do que o sujeito possa pensar. Ora matar é uma acção intrinsecamente má, mesmo que o sujeito tenha uma boa intenção – como porventura acontece na eutanásia, que nem por isso deixa de ser um homicídio – ou não tenha consciência da inerente malícia desse acto.

Para que os cristãos vivam a liberdade gloriosa dos filhos de Deus, precisam de ter uma consciência bem formada. Mesmo sendo inata a distinção entre o bem e o mal, nem sempre é evidente a opção moralmente correcta: embora seja ilícito matar alguém, pode estar justificada, em legítima defesa, a eliminação do agressor. É missão da Igreja contribuir para a formação moral de todas as pessoas, sobretudo dos católicos, que devem obediência ao magistério eclesial em matérias de fé e de moral.

Francisco aconselhou Joe Biden a falar com o seu pastor sobre a incoerência de se dizer católico e até comungar ao mesmo tempo que defende o aborto, um crime punido com a máxima pena canónica. Ao fazê-lo, o Papa recorda que faz parte da missão pastoral dos bispos e padres esclarecer os fiéis sobre as exigências morais a que estão obrigados. Em casos extremos, os pastores devem até recusar a comunhão eucarística aos católicos que negam algum dogma de fé, defendem a eutanásia ou o aborto, como já aconteceu a Joe Biden e à speaker Nancy Pelosi, que também se afirma católica e é pró-aborto, tendo sido por isso proibida de comungar, em Maio de 2022, pelo Arcebispo de São Francisco. Mons. Salvatore Cordileone, ao tomar esta corajosa decisão, explicou que a mesma, que foi transmitida a todos os padres da sua arquidiocese, é “puramente pastoral, não política”.

É pena que Nancy Pelosi tenha comungado, a 29 de Junho passado, numa missa celebrada no Vaticano e presidida pelo Papa que, contudo, não foi quem lhe deu a comunhão. Há alguma incoerência nessa cedência, que fere a comunhão eclesial, porque desautoriza um bispo, em relação a um legítimo mandato pastoral a uma sua diocesana. Se o Papa Francisco aconselhou Joe Biden a consultar, em relação à sua incoerência, o seu bispo, não deveriam os concelebrantes do Vaticano, em união com o Papa e tendo em conta a sinodalidade eclesial, corroborar as indicações pastorais do bispo diocesano?!

Por ter apoiado a revolução comunista da Frente Sandinista de Libertação Nacional e ser, na altura, ministro da Cultura da Nicarágua, o teólogo da libertação, Padre Ernesto Cardenal, foi publicamente repreendido pelo Papa João Paulo II, em Março de 1983. Quando o Santo Padre desembarcou do avião, Ernesto Cardenal, com um joelho em terra, pretendeu beijar a mão do Papa. Wojtyla não se deixou intimidar por essa atitude e, de dedo em riste, publicamente o admoestou, dizendo-lhe que se devia reconciliar com a Igreja, sob pena, que depois se verificou, de ser suspenso da sua condição sacerdotal.

Na Missa inaugural do seu pontificado, Bento XVI pediu: “rezai por mim, para que aprenda a amar cada vez mais o Senhor. Rezai por mim, para que aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho […]. Rezai por mim, para que não fuja, por medo, diante dos lobos”. A Igreja precisa de pastores que, como São João Paulo II, Bento XVI e Francisco, tenham a coragem de desmascarar os que, sendo servos daquele que é “homicida desde o princípio […], mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44), são lobos disfarçados de ovelhas.