Leio muita gente do PS (ou próxima do PS) surpreendida com as negociações de António Costa com PCP e BE. Como quem demonstra a sua incredulidade perante uma aproximação à esquerda que não se concebia para além de um bluff inofensivo. Sim, compreende-se a necessidade de a esquerda moderada se distanciar da estratégia suicidária de Costa. Mas, sinceramente, custa também a acreditar na sua surpresa. É que não é exacto dizer que a estratégia era inesperada. Por dois motivos.
Primeiro, porque os sinais de que essa hipótese era plausível foram vários, prolongados e explícitos. A presença de António Costa no congresso do LIVRE. O fascínio pelo Syriza. A “leitura inteligente” do Tratado Orçamental. A rejeição do conceito de “arco da governabilidade”. Os auto-elogios de Costa quanto à sua capacidade negocial na Câmara Municipal de Lisboa. Ou, a uma semana das eleições, a notícia do Expresso (nunca desmentida) de que o PS governaria mesmo perdendo as eleições. Enfim, a lista é interminável. E se é certo que nunca houve, da parte de António Costa, a confissão declarada de que identificava parceiros no PCP e no BE, o contrário é igualmente verdadeiro – nunca negou essa possibilidade e deu vários sinais de que o cenário era verosímil. Segundo, porque o projecto de António Costa é (e sempre foi) o poder. O próprio o assumiu quando desafiou a liderança no PS: não o fez por discordância política, mas porque afiançava ter mais habilidades do que Seguro para entregar o PS ao poder. Esse foi, desde o minuto inicial, o seu principal compromisso. Sem escrúpulos e sem limites.
Ou seja, este ponto de partida é um facto: as negociações do PS com PCP/BE eram razoavelmente previsíveis. Quando Passos e Portas perceberam e introduziram o tema na campanha, o PS acenou com a carta do “medo”. Só que, afinal, havia mesmo razões para ter medo e, esta semana, quem se assustou foram os moderados do PS. Ora, o ponto é este: se a aproximação do PS aos partidos à sua esquerda era um desenlace provável, realmente surpreendente foi o silêncio conivente que se gerou, durante semanas, entre os críticos desta opção no quadro do centro-esquerda. Um silêncio que só se rompeu após o 5 de Outubro, quando António Costa esticou a corda.
Sim, é justo apontar o dedo a António Costa, que lançando o caos nas negociações partidárias pode estar a liderar o PS para o abismo. Mas essa caminhada não começou ontem – e ele não a fez sozinho. A pergunta é fatal: enquanto Costa namorava à esquerda, onde esteve o PS moderado e europeísta, aquele que emergiu nos últimos dias alertando contra a “barafunda suicidária”, como qualificou Sérgio Sousa Pinto? Custa a acreditar que as personalidades desse centro-esquerda que hoje se arrepiam com a estratégia negocial de António Costa não tivessem visto os sinais, não os tivessem percebido ou não os tivessem levado a sério. Que, ocupando cargos nos órgãos do partido e lidando de perto com António Costa, tantas figuras do PS não fossem capazes de apreender a dimensão da ambição do seu próprio líder. Foram enganadas ou quiseram deixar-se enganar? No mínimo, iludiram-se.
O jogo de xadrez do PS está empatado e as dúvidas instalaram-se. Os moderados do centro-esquerda geriram expectativas que, num PS sem rumo definido, a natural inclinação europeísta prevaleceria. Mas esqueceram que, ao seu lado, habita um outro PS com iguais aspirações para a sua inclinação esquerdista anti-austeridade. Há ilusões de ambos os lados e, à mesa das negociações, António Costa não decide a quem dá a mão – cada opção tem os seus acérrimos adeptos. Estima-se, portanto, inevitável que, no final, quando a decisão for tomada (seja ela qual for), muitos socialistas se sintam defraudados nas suas expectativas. Enganados. E batam com a porta ou o pé. É por isso que dificilmente o PS sairá incólume deste processo. Com ou sem bluff, com acordo à esquerda ou à direita, no governo ou na oposição, o PS será, nesta próxima legislatura, o partido dos enganados.