A vida política de Sócrates é um dos temas mais fascinantes e dramáticos da política portuguesa desde o 25 de Abril. O antigo PM possui qualidades políticas óbvias. É determinado e corajoso. Tem carisma, é um comunicador nato e como PM deu a impressão de ser trabalhador e profissional. Recordo-me da campanha eleitoral de 2009 e dos debates, sobretudo com Ferreira Leite e com Francisco Louçã. Sócrates sabia que iria defrontar dois economistas experientes e preparou-se muito bem para os debates. Em comparação com o seu profissionalismo, Ferreira Leite e Louçã pareceram dois amadores, mal preparados e a improvisar.
Tenho uma tese sobre Sócrates, a qual pode ser um pouco ingénua, mas de qualquer modo é a minha. Acho que possui as qualidades que lhe teriam permitido um percurso universitário sério. Por razões que desconheço, a formação académica de Sócrates está recheada de truques, esquemas e factos duvidosos. Julgo que se encontram aqui, simultaneamente, o pecado original e a grande frustração de Sócrates. Toda a sua vida política acabou marcada pelos esquemas de jovem engenheiro. O suposto “mestrado” em Paris demonstra a frustração que Sócrates sente pelo défice do seu currículo universitário.
A tentativa de esconder os esquemas duvidosos da sua licenciatura iniciou um processo que levou ao mandato mais desastroso e perigoso de um PM na história da democracia portuguesa. Foi a investigação do jornal Público sobre a sua licenciatura que originou a primeira guerra entre o Sócrates e a imprensa. Sendo PM, Sócrates convenceu-se que os portugueses não poderiam saber a verdade sobre o seu percurso universitário (não estou certo que os portugueses se preocupassem tanto como Sócrates temia). Por isso, escondeu e mentiu. Quanto mais negou o que para muitos se tornava evidente, mais a imprensa investigou.
A recusa em assumir a verdade e o passado só poderia ter um resultado: Sócrates teria que calar e controlar a imprensa. A incapacidade em aceitar críticas juntou-se à vontade de esconder o passado. Mais do que um estadista, Sócrates é um homem de poder. A sua prioridade foi sempre o aumento de poder. Sócrates não governou tendo em conta o interesse público, governou sempre para consolidar o seu poder pessoal. Percebeu rapidamente que o poder, pelo menos do modo que o entendia, exigia o controlo de dois sectores fundamentais: a banca e a imprensa. Em Portugal, qualquer PM que tenha como objectivo principal a instrumentalização do sector financeiro e da comunicação social, goza da vantagem dada pela natureza pública da CGD e da RTP. Um PM sem escrúpulos, como Sócrates, não perde tempo a controlar a CGD e a RTP. Foi o que aconteceu logo em 2005. Mas, para Sócrates, a Caixa e a 5 de Outubro não chegavam.
Procurou igualmente controlar a banca privada e os grupos de comunicação social privados. No sector financeiro, fez uma coligação com o BES e forçou uma mudança de gestão que lhe permitiu controlar o BCP. Entre os grandes bancos, só o Santander e o BPI escaparam ao poder do PM socialista. Na comunicação social, Sócrates controlava o proprietário do DN, do JN e da TSF, através do BCP, tentou usar a PT para controlar a TVI e, como mostram as notícias deste fim de semana, a Ongoing para controlar a SIC e o Público. Na verdade, a aliança entre Sócrates e Salgado teria controlado a comunicação social em Portugal. Se tivessem conseguido, apenas a Cofina e o Sol teriam ficado de fora do controlo de Sócrates.
Entre 2005 e 2011, Portugal teve um PM que construiu uma biografia assente em mentiras. O país não poderia saber a verdade sobre o seu passado. Tinha assim que controlar a imprensa, porque só esta poderia desvendar a verdade e contá-la aos portugueses. Para isso, tinha que usar os bancos. O dinheiro ajuda a controlar a comunicação social. Desde o PREC, foi a maior ameaça à liberdade de imprensa que se assistiu em Portugal. O país não pode esquecer e a memória é necessária para que não volte a acontecer.
O PS ainda não expurgou este período grave da sua história. A competição pelo poder não permite que o partido o faça. Os seus dirigentes reduziram o problema Sócrates a uma questão de justiça. Mas não é apenas uma questão de justiça. A estratégia de um governo para controlar a banca e a comunicação social é uma questão política. E vai para além de Sócrates. Muitos ministros não teriam conhecimento dos comportamentos do Sócrates que estão sob investigação judicial. Mas todos eles, onde se inclui o actual PM, e o partido sabiam sobre as estratégias de aliança com a banca e de controlo sobre a imprensa.
As esquerdas estão sempre preparadas para atacar a banca e para defender a liberdade de imprensa. Mas foi um governo de esquerda, socialista, que elevou a cumplicidade com a banca até níveis nunca vistos e que tudo fez para controlar a comunicação social. Não foi apenas Sócrates. Foi um governo do PS. Terá o PS mudado? Os ataques de Costa à PT, depois da compra da Media Capital (é importante sublinhar) e os comentários de Ferro Rodrigues sobre a justiça são sinais de que os velhos vícios não desapareceram. Mais do que nunca é crucial lutar pela liberdade de imprensa. Essa luta compete hoje à direita. Como mostra o passado recente, as esquerdas em Portugal lidam mal com a liberdade.