Até há uns tempos, diziam-nos que a alternativa à maioria de esquerda de António Costa poderia ser um “bloco central” entre o PS e o PSD. Rio, segundo também constava, trabalharia para isso. Há dias, porém, algo mudou na percepção dos alinhamentos possíveis na política portuguesa. Agora, fala-se de uma eventual aliança PSD-Chega, ou Rui Rio-André Ventura. Os dois já até se põem condições um ao outro: Rio quer Ventura um pouco mais “moderado”, e Ventura quer Rio um pouco menos próximo do PS. Talvez por isso, Rio, que era geralmente invocado pela imprensa subsidiada como um “moderado”, inimigo do “radicalismo” liberal, começou outra vez, como já tinha acontecido antes das eleições, a ser vagamente retratado como um líder “autoritário”, uma espécie de Viktor Orbán à portuguesa.

Não sei se há ou haverá uma aliança Rio-Ventura. Ninguém sabe. Mas vale talvez a pena imaginar o que representaria essa aliança, e sobretudo um governo que daí pudesse resultar, tendo em conta o que Rio e Ventura têm feito e dito à frente dos seus partidos até agora. Quero deixar isto claro: este não é um exercício de futurologia, mas de interpretação de uma possibilidade política, que será interessante na medida em que ilumine a nossa situação actual. Não digo que isto vai acontecer, mas que, a acontecer, poderá ter este sentido.

A tese é esta: a haver essa aliança Rio-Ventura, é provável que a devamos entender como uma das respostas possíveis ao domínio socialista do regime. Neste sentido: como um movimento que, à direita, desloque os termos do debate político da questão das reformas, que é onde a direita tem estado focada desde Sá Carneiro e Cavaco Silva, para a simples questão do poder, isto é, de mandar no Estado e, através do Estado, na sociedade, que é a maneira como o PS e as esquerdas têm, com manifesta vantagem, encarado a política em Portugal.

Lembremos, a propósito, as eleições de 2019. A direita apareceu então ao eleitorado como uma espécie de farmácia. Havia de tudo. Havia líderes velhos e líderes novos. Havia partidos antigos e partidos recentes. Havia sociais democratas e liberais, e havia conservadores e populistas. Havia os que faziam concessões ao politicamente correcto e os que eram intransigentes. Havia até os que se diziam de direita e os que, na tradição da hipocrisia portuguesa, diziam que não eram de direita nem de esquerda. O eleitor de direita que não quisesse votar numa coisa, tinha a outra. Ora, mesmo assim, os partidos geralmente arrumados à direita – PSD, CDS, IL e Chega – conseguiram ter menos votos, todos juntos, do que PPD e CDS nas primeiras eleições desta democracia, em 1975: 1 810 277 votos em 2019 para 1 942 161 em 1975. Mais: nem entre si, partidos novos e partidos velhos conseguiram transferir votos. O PSD perdeu 10 deputados e o CDS 13, mas a IL e o Chega só ganharam 1 deputado cada um. Os votos do Chega, aliás, nem terão talvez vindo da direita, considerando a sua concentração em áreas de votação tradicional do PCP.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O problema da direita em Portugal não é, portanto, ser mais ou menos liberal, mais ou menos social democrata, mais ou menos conservadora, mais ou menos populista, mais ou menos politicamente correcta. O problema da direita em Portugal é que enfrenta um bloco eleitoral constituído pelo PS, com os seus aliados de esquerda, para o qual não há alternativa no país. Desde 1995, o PS ocupou o Estado e usou a expansão do Estado para controlar cada vez mais a economia e a sociedade. Enfraqueceu assim a economia e a sociedade civil, e fez, como seria de esperar, dos dependentes do Estado a grande base eleitoral do poder em Portugal. Não há outra, numa sociedade devastada pela violência fiscal e pelo arbítrio da administração. Fora do Estado, os mais jovens emigram, e os mais velhos, sem expectativas, abstêm-se. Mais ou menos liberalismo, mais ou menos novidade, não fazem diferença, como se viu em 2019.

Ora, acontece que o bloco de dependentes do Estado cultivado pelo PS e pelos seus aliados nada tem especificamente de esquerda. Não é nada “progressista”: não quer reformas, nem revoluções. Possivelmente, ressente até a “confusão” do “politicamente correcto”. É sobretudo muito cioso dos seus interesses e dos seus direitos adquiridos. Vota à esquerda, porque a esquerda, ao negar reformas, parece garantir-lhes esses direitos e interesses. Mas não há nenhuma razão para esse bloco não ser desviado para a direita, se a direita igualmente negar reformas e lhe garantir direitos e interesses. Provavelmente, a massa de dependentes do Estado, pela sua idade média, poderá até sentir-se mais aconchegada sob a protecção de uma direita zelosa  dos valores da ordem, da eficiência e também da “identidade nacional”, tal como ela era concebida quando todos eles passaram pela escola, antes de 1974.

Seria portanto possível entender as manobras e as posições de Rui Rio e de André Ventura, a admitir que elas são o que parecem, como uma iniciativa, a partir da direita, para disputar à esquerda o bloco de dependentes do Estado. Rio já deu a entender que, com ele, não haverá nenhuma revolução liberal. A  sua suposta “aproximação” ao PS, enquanto “social democrata”, serviu para provar isso. André Ventura já começou a cativar uma parte dos dependentes do poder, no caso das forças de segurança e de pensionistas que vivem inseguros nos subúrbios e na província.

Muito provavelmente, no entanto, a única maneira de desligar o bloco de dependentes do Estado do PS continua a ser a falta de dinheiro, como em 2002 ou em 2011. Será, se isso acontecer, a oportunidade de Rio e de Ventura. Para consolidarem a transferência do bloco eleitoral dos dependentes do Estado a seu favor, bastar-lhes-á então não cometerem, se forem governo, o erro que uma direita mais liberal cometeu em 2002 e em 2011. Nessas ocasiões, a direita tentou fazer das crises orçamentais ocasiões para “libertar” a sociedade civil do peso do Estado, forçando os dependentes do Estado a sustentar uma parte dos ajustamentos. Como se sabe, não resultou. Em parte, porque a direita no governo também teve de recorrer ao fisco. Na prática, acabou apenas por voltar contra ela os dependentes do Estado – aqueles que mais votam em Portugal. Rio e Ventura poderão usar a crise de sucessão de outra maneira, para provarem a esses dependentes do Estado que nunca terão tão bons defensores como eles, e que com eles tudo até funcionará melhor.

Um hipotético governo Rio-Ventura poderia, portanto, ser uma nova época na direita portuguesa. Ao invés dos governos de Durão Barroso ou de Passos Coelho, não tentaria reformar o Estado, mas apenas ocupar o Estado, isto é, desalojar o PS, de modo a que passasse a ser a direita a manipular o mecanismo de influências e de promiscuidades através do qual os socialistas controlam a sociedade portuguesa.  A direita, finalmente, poderia mandar na administração pública, nas empresas, nos bancos, na comunicação social, na vida dos portugueses, tal como agora fazem os socialistas. Um socialismo “nacional”, protagonizado pela direita, substituiria o actual socialismo “politicamente correcto”, protagonizado pela esquerda.

Nessa altura, atirados para a rua, o PS e os seus parceiros, desamparados, tentarão talvez enrolar-se nas bandeiras da liberdade e da democracia, e acusar os seus sucessores de serem o equivalente português dos Orbán, dos Bolsonaro ou dos Trump. Se Rio e Ventura arranjarem dinheiro (europeu, claro) para pagar aos dependentes do poder, poderão ignorar olimpicamente essas rábulas de anti-fascismo. Talvez então os socialistas e os seus parceiros tenham tempo para se lembrar que foram eles quem construiu o mecanismo de poder que subverteu a democracia em Portugal. Provavelmente, terá sido esse sempre o destino do PS e da esquerda portuguesa, com o seu facciosismo e a sua tendência de tudo concentrar no Estado e de tudo controlar na sociedade: darem um dia um Viktor Orbán a Portugal, tal como os seus antepassados republicanos, na década de 1920, lhe deram um Salazar.

Quanto à direita reformista, conservadora-liberal, em que este colunista se filia, a sua oportunidade terá passado. Restar-lhe-á assistir à guerra dos socialismos, lamentando que socialistas “nacionais” e socialistas “politicamente correctos” não possam perder ambos.