Talvez ainda alguém tivesse um resto de esperança, porque esta semana, António Costa e Rui Rio apressaram-se a vir exterminá-la, com uma entrevista cada um. No filme Groundhog Day (O Dia da Marmota, que em português ficou O Feitiço do Tempo), o personagem principal acorda todas as manhãs preso no mesmo dia, condenado a repetir os mesmos encontros e a reviver os mesmos incidentes. Em ano de eleições, depois de quatro anos de mediocridade, já todos percebemos que, depois de votar, nos arriscamos a começar outros quatro anos iguais — a não ser que tudo piore. Melhor, com os nós que a oligarquia deu ao regime, é que não parece possível.

O presidente do PSD, para parafrasear um velho dito, surpreendeu não surpreendendo. Em entrevista, revelou que, por este ano haver eleições, fará de conta que está zangado com o governo, mas que depois não terá quaisquer problemas em propor “acordos” aos socialistas. Os oligarcas estão tão à vontade, que já se dispensam de nos poupar à nudez do seu cinismo. Rio resolveu ainda explicar à nação porque é que o PSD não é exactamente igual ao PS: porque – imagine-se — o PS não deixou. Senão, segundo Rio, Portugal teria hoje dois partidos da Internacional Socialista. Só não nos disse porque é que, sendo assim, não poderíamos ter só um.

A entrevista de António Costa conseguiu ser tão curiosa, com o seu anúncio aos eleitores de que uma “maioria absoluta” do PS é, afinal, “virtualmente impossível”. Mas porquê? Não virou o governo a “página da austeridade”? Não calou o PCP e o BE? Não se dá bem com o presidente da república? Não tem a economia a crescer? Não elegeu Centeno para o Eurogrupo? Não enfrenta uma oposição desmoralizada e confusa? A ciência nacional ensina, há anos, que boas notícias do INE são necessariamente votos nas urnas. A ciência mudou?

No caso de Rio, não interessa agora voltar a lembrar que o PSD de “centro-esquerda” e candidato à Internacional Socialista foi uma táctica dos tempos em que era preciso sobreviver ao COPCON ou de quando, entre 1976 e 1978, pareceu que só uma aliança com o PS poderia levar a direita ao poder. Obviamente, Rio está convencido que essa táctica voltou a fazer sentido. O que isto significa é que Rio está a privar o regime do partido que, nos últimos quarenta anos, liderou as coligações reformistas em liberalizaram Portugal e o fizeram aproximar dos padrões europeus. Já não acredita que isso seja possível, ou simplesmente, depois do trauma dos ajustamentos de 2002 e de 2011, sabe que o partido não quer essa responsabilidade, preferindo reservar-se, através do negócio da regionalização, uma parcela de poder local?

As modestas expectativas de António Costa levantam a mesma dúvida. Foi este duche frio na ideia da maioria absoluta uma maneira de António Costa admitir que a austeridade apenas trocou de máscara, o crescimento económico é fraco, os equilíbrios do orçamento são efémeros, a função pública exige mais, e pode bem ser que o castelo de cartas não aguente até Outubro? Ou, em alternativa, o problema nem é tanto a maioria absoluta estar fora do seu alcance, mas não lhe dar jeito nenhum? A maioria absoluta, para um governo, não é só uma maior liberdade de acção. É também uma fixação das responsabilidades, sem as desculpas do apoio parlamentar. E é, acima de tudo, a falta de pretexto para uma manobra à 2001, isto é, a fuga antes de a tempestade chegar. Foi evadindo responsabilidades que o grupo de amigos de que Costa é agora o chefe governou durante a maior parte dos últimos vinte e cinco anos, colonizou o Estado e a partir daí quase todos os bancos e grandes empresas. Perante as incertezas dos próximos tempos, a geringonça é uma porta de saída muito conveniente.

Enfim, é assim que vamos votar, como o homem do dia da marmota ia para a cama: com a suspeita de que, quando o despertador tocar na manhã seguinte, o dia vai ser igual ao de hoje. O que há para ver já vimos.

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