O «Silva dos plásticos» era um sujeito modesto que vivia numa parvónia perdida no mapa, onde explorava uma loja de utensílios feitos com o material que lhe dera a alcunha, e, sem que se lhe conhecessem obras ou feitos notáveis, tinha a mania das grandezas, dizendo-se conhecedor e amigo dos grandes deste mundo. Um conterrâneo seu, farto de tanta prosápia, foi-o sucessivamente desafiando com nomes de figuras públicas e, surpreendentemente, um após outro, o «Silva dos plásticos» comprovava conhecê-los a todos, e bem. Um dia, exasperado, o amigo desafiou-o com o Papa, o Papa Francisco. Silva não se deixou intimidar, garantindo-lhe que, não apenas os dois eram velhos amigos, como lho provaria no Vaticano, para onde partiriam imediatamente, a expensas do seu negócio. Na missa dominical a que, uma vez chegados, foram assistir, já no meio dos crentes, o Silva anunciou ao companheiro de viagem que se ia ausentar para ir ter com o Papa, que estava à varanda do Palácio Apostólico, donde se dirigia aos fiéis. Para estupefação do colega, assim aconteceu: minutos depois, sorridente e íntimo, lá estava o «Silva dos plásticos» ao lado de Francisco, os dois a acenar à multidão. Nesse preciso instante, de entre os fiéis, um deles exclamou: «Olha o Silva dos plásticos! Mas quem será o sujeito vestido de branco que está ao lado dele?». Kaput! Na sua parvónia natal, o «Silva dos plásticos» nunca mais perdeu a aura insuperável dos grandes homens.

Apesar da coincidência onomástica do apelido, esta anedota inocente, que circulava entre a criançada quando eu era garoto, não surge exclusivamente por causa da nomeação de António Costa e Silva, por António Costa, como o mais recente salvador da pátria, mas pelo princípio que ela encerra. Na verdade, foram já vários os «Silvas dos plásticos» nomeados desde que António Costa é primeiro-ministro, todos apresentados como personalidades visionárias e inquestionáveis, com transcendentes talentos, que nos livrariam de perigos inomináveis e de ameaças horríveis. Alguns foram e são ministros, outros nunca o chegaram a ser, embora pudessem ter sido, mas, a todos, a Pátria, quase sempre ignara e ingrata, deveria ficar devedora pela sua redenção. Ele foi Vieira da Silva, que salvou a Segurança Social do colapso; Lacerda Machado, que salvou a TAP da falência; Siza Vieira, que salvou as empresas da descapitalização; Mário Centeno, que a todos nos salvou da austeridade; e o pai de todos os «Silvas», o inevitável Batista da Silva, que só teve oportunidade de nos salvar da monotonia taciturna dos dias da austeridade passista, porque o impediram de cuidar dos destinos da economia nacional, onde também ele se proclamava um «expert». E, agora, saído da névoa matinal do Largo do Rato, António Costa e Silva, o novo anacoreta do regime, que em dois homéricos dias traçou um plano, ou melhor, o plano que salvará a economia portuguesa do colapso durante os próximos dez anos. É obra, e todos lhe haveremos de ficar muito gratos.

O problema dos muitos «Silvas dos plásticos» com que a sorte nos tem bafejado, é que, na boa verdade das coisas, eles não existem. Ou melhor, existir até existem, mas não foram providos pelo Altíssimo dos poderes sobre-humanos que o nosso primeiro-ministro lhes atribui e em que parece sinceramente acreditar. Vieira da Silva não salvou a Segurança Social de coisa nenhuma: empurrou o problema com a barriga para a frente, aumentando a idade das reformas para as começar a pagar mais tarde; Lacerda não salvou a TAP da falência: se esta estava a recuperar antes do crash da Covid, isso devia-se ao capital injetado pelos novos sócios privados na empresa e pelos investimentos, em capital físico e humano, que nela foram feitos. Siza Vieira limitou-se a beneficiar das baixas taxas de juros do Banco Central Europeu, que permitiu que as empresas se financiassem a baixo custo. Mário Centeno também não nos salvou de nada em especial, a não ser do despesismo inato dos seus colegas de governo, fazendo o que qualquer mãe de família diligente faz quando tem a desdita de ter um filho viciado em jogo ou droga: “cativou”, isto é, escondeu o dinheiro que cobrou compulsivamente aos contribuintes. E quanto a Batista da Silva, que tão a sério foi levado pelas mais diversas autoridades da pátria, foi pena que não lhe tenha sido dada oportunidade para envergonhar, mais ainda, os seus devotos arautos.

Resta-nos, pois, o Professor António Costa e Silva, com que o primeiro-ministro nos quer agora deslumbrar. Pois bem, por mais méritos académicos e profissionais que certamente terá, ninguém consegue planear a economia a médio ou a longo prazo. A economia é acção humana, e os homens são imperscrutáveis e indecifráveis nos planos que fazem para as suas vidas. Todas as experiências históricas de socialismo planificador o demonstram à saciedade, e seria extenuante enumerá-las. Além do mais, parece que António Costa se esqueceu que tem ministros no governo e que vivemos ainda em democracia. Ou para que servirão os ministros da economia, das finanças, da administração interna e os muitos mais que por lá andam, senão para gerir o país? E poderá um governo arrogar-se no direito de planear políticas públicas a dez anos, quando é mais do que provável que já não estará em funções muito antes desse prazo terminar? Nada disto parece, porém, interessar a António Costa. O que o entusiasma é anunciar um desígnio coletivo, concebido pela mente genial de um grande e prodigioso talento que ele descobriu, um sábio que já nos disse que só se dispunha a descer das etéreas alturas por onde o seu espírito paira para vir até nós, pobres mortais, graças ao seu abnegado sentido de serviço público e à grandeza da missão que o aguarda. Terminados os dois dias de trabalho insano que seguramente terá tido para traçar o plano da nossa salvação, o Professor António Costa e Silva resumiu, também em duas palavras, a essência do que o seu aprumado labor intelectual nos pretende oferecer: «mais estado!». Ou seja, mais do mesmo.

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O socialismo radical é, como Ludwig von Mises nos explicou na sua obra Socialismo, Análise Económica e Sociológica, uma forma de ascese mística e moral, quase uma crença religiosa. Como quase todas as crenças, também esta descrê do indivíduo, do ser humano singular e social, do homem que se dispõe a relacionar com o outro em processos de cooperação voluntária, a que se dá vulgarmente o nome de «mercado», para lhe oferecer homens providenciais, líderes condutores de almas, carismáticos tocados pela graça do Divino Espírito Santo, que nos mostram a revelação e indicam o caminho da virtude. O socialismo radical é, verdadeiramente, um eudemonismo elitista, uma doutrina que crê na felicidade terrestre plena e na capacidade de uns poucos – a elite governante — nos conduzirem até ela. Os pobres comuns, entregues a si mesmos, só fazem asneiras e disparates. O «mercado», que somos todos nós, falha todos os dias. É necessário que alguém o dirija e conserte. Os homens, entregues a si mesmos, sem terem génios do quilate do Professor Costa e Silva a guiá-los, precipitam-se fatalmente no abismo.

Platão, na Grécia Antiga, chamou a esta predisposição filosófica e política o «governo dos sábios». Karl Popper demonstrou, muitos séculos depois, que nele se encontrava a origem do pensamento totalitário moderno e a negação da sociedade aberta e do espírito da democracia. Os muitos totalitarismos que essa atitude política gerou, em todo o século XX e mesmo nos nossos dias, demonstraram que atrás de cada «homem providencial», de cada «sábio» que desce da montanha para nos iluminar e guiar, está quase sempre um autocrata ou mesmo um ditador, que se julga acima dos outros e desconsidera aqueles que, na verdade, lhe são iguais.

É neste tempo de super-homens, que operam maravilhas e prodígios, que vivemos. E nele permaneceremos até ao próximo embate frontal com a realidade.