1 No ano lectivo 2018/2019, 38% dos alunos no final do ensino secundário recorreu a serviços de apoio ao estudo (“explicações”). É uma magnitude tremenda, que mostra que, para 4 em cada 10 alunos, o que se aprende nas aulas não é considerado suficiente. E, destes 38%, apenas 8% obtêm estes serviços na escola (menos do que em 2014/2015, quando chegava a 12%). Ou seja, para milhares de alunos, a escola não satisfaz as suas necessidades e o apoio ao estudo depende do poder económico das suas famílias. Eis um sinal de alarme que um relatório recente da DGEEC apontou, mas ao qual pouca gente deu atenção. Portugal está longe de ser caso único neste desafio de lidar com a necessidade de milhares de alunos recorrerem a serviços de apoio ao estudo (a expressão “sistema educativo sombra” é usual na investigação) – mas fica evidente que o caso português está entre os mais graves.
2 A gravidade não é apenas uma questão de escala. É também de perfil. Seja da escola: são mais os alunos da rede pública (40%) do que da rede privada (27%) a necessitar destes apoios. Seja dos alunos: Portugal está, entre a OCDE, entre os países onde o perfil socioeconómico dos alunos tem maior influência no seu percurso escolar. E essa tendência é reforçada pelo universo das explicações. Entre os filhos de dirigentes e quadros superiores da administração pública, 53% acede a apoio ao estudo. Entre os filhos de especialistas de profissões técnicas e intelectuais, a percentagem atinge os 55%. Entre os filhos dos pais pouco ou não qualificados, apenas 24% dos jovens tem apoio ao estudo – menos de metade.
3 Assim sendo, não surpreende que as explicações sejam um serviço ao alcance sobretudo dos bons ou muito bons alunos – e longe de ser uma opção abrangente para os alunos em risco de insucesso escolar. Entre os alunos que têm médias negativas (entre 0-9 valores), só 21% teve apoio ao estudo. Nos segmentos seguintes, a percentagem duplica: 41% para os 10-14 valores, 43% para os 15-17 valores, 47% para os 18-20 valores. Parece um contrassenso: quanto melhores notas têm os alunos, mais recorrem às explicações. Mas a lógica é simples de desvendar: as explicações no secundário têm uma forte relação com as expectativas de prosseguir estudos no ensino superior (ou seja, ter médias internas altas e bons resultados nos exames para aceder aos cursos desejados).
4 Nos alunos que frequentam os cursos científico-humanísticos do ensino secundário, as realidades variam muito em função das áreas de estudo. Entre os alunos de Ciências e Tecnologias, 65% recorreu a explicações. Entre os alunos de Ciências Socioeconómicas, 74% dos alunos teve apoio ao estudo. A diferença é abismal para as outras áreas – 26% para Línguas e Humanidades, 32% para Artes Visuais. O que justifica tais diferenças? A disciplina de Matemática, de longe a mais popular no mundo das explicações (50% dos alunos com apoio ao estudo aposta na Matemática). E o facto de nas áreas das Ciências, Tecnologia e Economia estarem alguns dos cursos superiores mais competitivos à entrada, com notas altíssimas de acesso. Ou seja, as explicações não estão propriamente ao serviço da aprendizagem, mas sim do alto rendimento para prossecução de estudos.
5 Todos estes indicadores referem-se ao ano lectivo 2018/2019 e são consistentes com os anos anteriores. Além disso, são pré-pandemia. Sabendo que as desigualdades sociais ampliaram as desigualdades educativas desde Março de 2020 e tendo já um vislumbre muito inquietante sobre os danos causados na aprendizagem das crianças desde então, só se pode ficar alarmado acerca do cenário geral: os mais desfavorecidos e os que mais estão em risco de insucesso serão aqueles que neste período de recuperação da aprendizagem menos acesso terão a estes serviços de apoio ao estudo – em parte, por razões económicas, porque cada vez menos as escolas proporcionam este apoio aos seus alunos.
6 Isto obriga-nos a tirar algumas conclusões – aqui vão três. A primeira é que só com uma enormíssima falta de noção se pode alegar que o sistema actual de acesso ao ensino superior é justo, quando vive sustentado num sistema educativo sombra, composto por serviços de apoio e explicações, que serve para potenciar o alto rendimento e garantir acesso aos cursos para os alunos em melhores contextos socioeconómicos. A mesma falta de noção aplica-se a quem, pretendendo alterar dramaticamente o acesso ao ensino superior e a sua relação com os exames do ensino secundário, acredita que com um outro modelo de acesso não haveria enviesamentos semelhantes – quem tem mais instrumentos prepara-se melhor para quaisquer que sejam os critérios de acesso. Não há soluções mágicas.
7 A segunda conclusão é que a raiz do problema está na incapacidade de as escolas apoiarem realmente os seus alunos, obrigando-os a recorrer a serviços pagos que excluem parte da população. Não é possível ou legítimo impedir que os alunos tenham explicações – ainda bem que há quem queira aprender mais e ir mais longe nos seus estudos. Mas é legítimo exigir ao Estado que tenha, nas próprias escolas, mais meios à disposição dos alunos, de modo a que as condições económicas não sejam um factor de exclusão. Em vez de slogans sem significado, o investimento nas escolas públicas tem de passar por aqui: proporcionar condições, meios e serviços que ajudem os alunos a atingir o seu potencial, sobretudo os alunos em risco de insucesso escolar e oriundos de contextos desfavorecidos. Ou, em alternativa, criando mecanismos de apoio financeiro a esses alunos para que frequentem os centros de estudo (por exemplo, um “cheque-estudo”, tal como existem os “cheques-cirurgia”).
8 A terceira conclusão é que o pouco que este assunto se tem discutido tem sido à boleia de medidas-bandeira, como a introdução de quotas de acesso ao ensino superior para os alunos oriundos das escolas TEIP (as que têm uma elevada percentagem de alunos com Acção Social Escolar), que vão no sentido errado. Errado porque são meros atalhos fáceis (demora dois minutos: basta alterar a legislação) para fingir enfrentar problemas estruturais e profundos. Neste caso, aliás, a medida até foi apresentada como uma quota racial, de forma claramente abusiva – os alunos que frequentam as escolas TEIP não são todos não brancos –, o que serviu para expor a preferência pela propaganda. Como o relatório da DGEEC mostra com clareza, o problema do acesso ao ensino superior não é racial, é de pobreza e de baixas expectativas. E isso não se resolve com atalhos e quotas, resolve-se com um apoio sério e sustentado à aprendizagem. Demora mais tempo e custa mais dinheiro? Sem dúvida. Mas só assim funcionará e se acabará com o sistema educativo sombra.