Tudo, a pouco e pouco, se vai tornando mais apertado, vigiado e regulamentado: a liberdade, a linguagem, o pensamento. Cada semana nos traz novos exemplos, cada um apimentado com uma certa cor local, mas todos eles convergindo num ponto único: o de uma censura generalizada que visa interditar a liberdade do discurso em nome da necessidade de proteger a célebre “auto-estima” quer de certos grupos étnicos, quer da subjectividade individual erigida em lugar de permanente queixa contra a indiferença alheia e a incompreensão do mundo. Desenganem-se aqueles que pensam que tudo isto não passa de uma conjuntural e provisória loucura destinada a desvanecer-se sob o efeito de um sopro de bom-senso vindo de um qualquer lugar, ou auto-destruindo-se como resultado dos seus próprios exageros. Não. Foi algo que veio para ficar e que apresenta todos os sinais de uma tendência poderosa e praticamente incontrolável que varre tudo à sua frente. Não pretendo que seja impossível encontrar pequenos lugares de resistência a essa tendência generalizada, mas estou certo que eles se pagarão com um cada vez maior isolamento e com uma indisfarçável solidão.

Os Estados Unidos estão, como de costume, na vanguarda das ideias e é o seu exemplo que inspira o que se passa hoje em dia em Inglaterra e por essa Europa fora. A França, por exemplo, distingue-se do resto apenas pela forma particularmente virulenta como o chamado “islamo-esquerdismo” aí se manifesta. Mas, no essencial, é a mesma coisa. E quem fala da Inglaterra e da França, fala da Europa democrática inteira, inclusive do nosso pequeno Portugal, onde os elementos mais arcaicos do Bloco de Esquerda – aqueles que vêm das várias formas da herança política do marxismo – paradoxalmente funcionam ainda como obstáculo ao pleno desenvolvimento da nova ideologia woke, apesar do Bloco a exprimir abundantemente, ao ponto de isso se ter transformado na sua imagem de marca.

Fiquemo-nos por alguns exemplos dos últimos dias, que são tudo menos exaustivos.

A mayor de Chicago, Lori Lightfoot, do Partido Democrata, é negra. Apoia, é claro, o Black Lives Matter. Mas não se fica por aí. Para combater o “racismo estrutural” ou “sistémico”, tomou uma curiosa decisão: conceder apenas entrevistas individuais a jornalistas negros ou, grande sinal de tolerância, mestiços. Todas as críticas que lhe haviam sido feitas enquanto mayor, declarou, provinham de um enviesamento racial. E ela já perdeu a paciência para educar homens brancos. A extraordinária decisão foi acatada sem grandes protestos na cidade. De resto, os programas que a Câmara de Chicago tem lançado, reforçados agora pela insistência do Presidente Biden em políticas centradas na “equidade”, já abundam em critérios que determinam a exclusão racial daqueles que têm a pele branca. Ficam surpreendidos com o gesto de Lori Lightfoot? Deviam ficar ainda mais surpreendidos com a tranquila aceitação que a comunidade testemunha a esse gesto. Ela não o teria tomado se não soubesse que, nos Estados Unidos dos nossos dias, quase ninguém a censuraria por isso. A restrição da liberdade do discurso, ainda por cima motivada por preconceitos racistas, está ali bem instalada. Como notou a escritora francesa (e negra) Rachel Khan, um novo segregacionismo, com as suas particulares neuroses, tomou conta dos Estados Unidos, e com ele a intolerância e o totalitarismo.

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Tanto a decisão de Lori Lightfoot quanto a naturalidade como foi acolhida só se explicam pela difusão generalizada da tese do “racismo sistémico” ou “estrutural” posta a circular pela socióloga Robin DiAngelo. De acordo com a tese, tudo, sem excepção, na nossa sociedade testemunha da pervasividade do racismo branco, tão presente nos comportamentos claramente racistas quanto naqueles que aparentemente contra estes se insurgem, desde que atribuídos a brancos. De facto, quando um branco se afirma não-racista está, sem ter consciência disso, a exorbitar de racismo (é a “fragilidade branca”), já que pretende ocultar o facto de que a sociedade como um todo se encontra estruturada de forma racista, ao ponto de a expressão “racismo branco” aparecer como naturalmente pleonástica: todo o racismo é branco e todo o branco é racista.

Como é bom de ver, não é só a ideia como um todo que é absurda. Os seus efeitos práticos são fantasticamente perniciosos em todos os domínios. Vejam o caso da polícia. Se um polícia branco prende um negro, por muitas razões que tenha para o fazer, a acusação de racismo cairá logo sobre ele, impiedosa. E, de acordo com a doutrina, ele está, de facto, a ser racista, conscientemente ou não. Quando recentemente a activista negra Sasha Johnson foi alvejada em Londres (encontra-se em estado crítico no hospital), logo a dirigente trabalhista e deputada Diane Abbott, muito próxima do antigo líder Jeremy Corbyn, denunciou um crime de ódio racista. Acontece que a investigação policial parece concluir que a bala que lhe acertou foi uma bala perdida numa rixa entre dois gangs constituídos por negros. O que poderia ser visto como um desmentido da acusação de Abbott, se deixado nas mãos de um discípulo ou discípula de Robin DiAngelo imediatamente será visto, por artes mágicas da dialéctica do “racismo sistémico”, como uma sua indirecta confirmação, já que tudo está decidido à partida. Deixo a quem me lê a tarefa de imaginar o curso dos argumentos. A fortuna extraordinária dos termos “sistémico” ou “estrutural” é, de resto, prodigiosa. Um documento recente da Igreja de Inglaterra apela a que a Igreja assuma o seu “pecado estrutural (structural sin)”. E certamente que não faltarão por aí teses dedicadas ao “pecado sistémico” em Santo Agostinho. Assim vão os tempos. Assim os tempos cada vez mais serão, não tenham dúvidas.

Até aos mais ínfimos detalhes. Como, por exemplo, no caso das chamadas “micro-agressões”. Seguindo o exemplo de várias outras universidades do Reino Unido, a Universidade de Cambridge elaborou uma lista muito extensa de potenciais ofensas que permitirão aos estudantes denunciarem o comportamento de colegas e professores. A lista compreende um vasto conjunto de “micro-agressões”. Por exemplo, se um professor franzir o sobrolho numa conversa com um estudante negro, isso será imediatamente tomado como uma “micro-agressão” susceptível de ser denunciada e convenientemente punida. O que é importante é que nada possa, em nenhuma circunstância, ferir a “auto-estima” de qualquer minoria, étnica ou outra. Na Califórnia, as escolas são encorajadas a guiarem-se, no ensino da matemática, por um documento intitulado: “Um caminho para o ensino equitativo da matemática: desmantelando o racismo no ensino da matemática”. A defesa da equidade, tão cara a Joe Biden, passa aqui pela destruição do mito da objectividade, que perpetua a supremacia branca e a opressão das minorias através da convicção que existem “respostas certas” e “respostas erradas”. Ora, não há respostas certas nem respostas erradas. Dois mais dois não têm de ser quatro: podem ser cinco ou um balão azul. Pretender o contrário é fazer prova do mais abjecto racismo sistémico.

E chegamos aqui a um ponto essencial. E esse ponto essencial é o da redução da necessária luta pela igualdade entre entre negros e brancos, ou entre homens e mulheres, a uma defesa extremada da subjectividade como lugar por excelência de todas as virtudes. Da subjectividade individual e daquilo que se poderia chamar a subjectividade colectiva das minorias. Tudo o que se possa opor a essa subjectividade – em grosso, aquilo que Freud chamava a prova da realidade – é visto como o inimigo a abater. Se alguém lembrar que nenhuma sociedade pode sobreviver, para continuar a falar como Freud, se se reger apenas pelo princípio do prazer sem qualquer limitação pelo princípio da realidade, tal proposição é imediatamente vista como demonstrando o tal pervasivo racismo sistémico. Nenhum exemplo disto é talvez tão bom como o título do programa que Harry – o velho Taki, na Spectator, chama-lhe Prince Halfwit; eu chamo-lhe Príncipe Tadinho – e a horrenda Oprah Winfrey têm em conjunto: The Me You Can’t See, “O Eu que não podes ver”. Está tudo aqui. O egotismo primário. A afirmação de uma verdade superior na profundidade do “detestável Eu” de que já falava Pascal. A delícia obscura da auto-exposição, sem distância irónica alguma por relação a si mesmo. A vontade nihilista de abolir um mundo que se recusa a reconhecer-nos como o seu centro indisputável. “O Eu que não podes ver” é “O Eu a que deves obedecer”.

É em nome desse Eu – o Eu de cada um e o Eu colectivo das minorias – que se constitui um mundo de censura, todo ele concentrado na busca dos “crimes de ódio”, tão latamente entendidos que abarcam praticamente tudo o que se quiser. É em nome desse Eu – Eu, Eu, Eu – que a liberdade do discurso (“expressão” é um conceito mais ambíguo) é limitada dia após dia, num enclausuramento progressivo da palavra. Francamente, já estivemos muito mais longe do 1984 de Orwell. Pode-se ouvir a polícia do pensamento a subir as escadas do nosso prédio. E ficamos a saber quem é o Grande Irmão: é o Eu invisível, aquele que não podemos ver. Face à sua omnipotência – como em Orwell e na grande canção esquecida de David Bowie –, We Are the Dead.