Há duas pessoas a quem devo a oportunidade de ter sido jornalista: Francisco Bettencourt Botelho e Nuno Rocha. O primeiro, jornalista, meu amigo de infância e adolescência, teve, um dia, a ideia de me perguntar se eu teria algum interesse em preencher um lugar de estagiário na redação de Economia do “Tempo”, quando aquela madrugada do início de Julho de 1986, em que estivemos sentados à conversa numa mesa do Snob, já ia longa.

Eu disse que “sim”. E o Francisco levou-me a sério. No dia seguinte, mal dormido e de ressaca, estava na receção do semanário à hora combinada. Eram dez da manhã e aquilo que se seguiria, de acordo com a agenda, era uma entrevista com o diretor do jornal. Não me sentia em grande forma para conversas sobre a situação política do país, muito menos sobre as subtilezas da economia portuguesa, acabada de entrar na Comunidade Económica Europeia. Mas tinha que ser.

Nuno Rocha acolheu-me com o sorriso aberto que raramente largava e com aquela boa educação que nunca vacilava. A conversa podia ter corrido muito mal e a minha carreira de jornalista esteve a pouca distância de ter cessado ali. Seis anos antes, já tinha tentado encontrar, pela primeira vez, uma porta de entrada para o jornalismo também através do “Tempo”. Fiquei de fora. Aparentemente, já estavam servidos de gente que ambicionava escrever sobre música. Queriam jornalistas de política e fizeram uma ótima escolha ao oferecerem a Paulo Portas uma das vagas na redação.

Jamais me esquecerei que Nuno Rocha me perguntou se eu era formado em Economia. Entre o meu estado ensonado, quase letárgico, e a ânsia de agradar para agarrar o lugar, confirmei. Escassas décimas de segundo depois, percebi que tinha acabado de dizer um enorme disparate e tratei de desfazer o equívoco. Não, não era de Economia, estava a terminar a licenciatura em Direito, na menção de jurídico-económicas. A expressão de Nuno Rocha ficou grave. Observou-me durante alguns segundos, para tentar perceber que espécie de cromo tinha à frente dele. De facto, parecia que estava a zombar, precisamente na hora menos adequada para o fazer.

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Provavelmente pelo facto de estar habituado a lidar com gente exótica nas redações em que exerceu a profissão de jornalista, e por achar que mais um não faria diferença, acabou por me aprovar e selou as boas vindas com um aperto de mão. Seguiram-se dez meses em que integrei aquela pequena redação de um semanário que já tinha vivido a sua era dourada, que se debatia com graves dificuldades financeiras, depois de ter chegado a ameaçar a liderança do Expresso.

Na primeira semana de trabalho, deram-me as páginas de Internacional. Para escrever, editar, paginar e fechar. Quinze dias depois, o Francisco Bettencourt Botelho foi cumprir o serviço militar obrigatório e fiquei, também, com as páginas de bolsa. Para escrever, editar, paginar e fechar. Nada disto me inspirou especial receio. Nem o facto de, com duas semanas de jornalismo, me terem dito que tinha de ficar de piquete, na gráfica, a supervisionar todo o jornal com o objetivo de garantir que tudo ia certinho para a impressão.

Só se esqueceram de me avisar que o diretor costumava ser liberal a escrever os editoriais e que, já na montagem, era habitual ter de se cortar umas linhas ao texto, que raramente cabia no espaço limitado da página 2. Lá tive que dar indicações sobre aquilo que, do meu ponto de vista, podia ser cortado, sem perturbar o conteúdo. No dia seguinte, com o jornal já pronto e nas bancas, Nuno Rocha não refilou com os cortes. Safei-me.

Conto estes pormenores porque comecei a carreira num jornal que vivia uma fase de agonia e que necessitava de uma liderança confiante e assertiva. Nunca, durante o período em que trabalhei no “Tempo”, Nuno Rocha abandonou o otimismo ou mostrou menor energia perante as dificuldades. Também não se lhe esmoreceu, jamais, a vontade de lançar projetos novos.

O caderno de Economia do semanário que fundou foi pioneiro. Vivíamos numa época em que o despertar da iniciativa privada e dos novos grupos económicos justificava uma aposta na informação sobre esta área. A bolsa ressuscitava do estado moribundo em que tinha ficado após os anos revolucionários e o “Tempo” estava em cima dos acontecimentos, com a preocupação de que o jornalismo nesta área fosse pedagógico. Nuno Rocha não tinha o menor talento para a gestão, mas demonstrava visão. E tinha coragem. Muita coragem.

Quem se recorde do ambiente opressivo do PREC sabe do que se fala, quando se menciona o lançamento de um jornal que, em 1975, estava claramente fora de tom. Não era de esquerda, defendia a normalização da democracia portuguesa de acordo com os parâmetros dos regimes em vigor na Europa Ocidental e não se calava perante os carimbos que lhe caíam em cima, aplicados por quem preferia uma imprensa monocolor, apoiante, ou complacente, em relação às aventuras terceiro-mundistas que ameaçavam Portugal.

Tal como sucede no percurso de qualquer homem que não tenha receio de correr riscos, há aspetos menos felizes no de Nuno Rocha, como o apoio à Indonésia quando o país ocupava Timor-Leste com mão de ferro. Mas as liberdades de expressão e de opinião, pelas quais lutou, deram-lhe todo o direito e legitimidade para expor as suas convicções e oferecer a escrutínio a respetiva fundamentação. Teria sido muito mais confortável a opção pela autocensura, de forma a evitar críticas, muitas vezes formuladas com uma arrogância e um desprezo que Nuno Rocha jamais teria sido capaz de usar por, simplesmente, não estar na sua natureza de grande cavalheiro.

Pela oportunidade que me proporcionou de seguir a carreira de jornalista mas, sobretudo, pelo que fez pela liberdade de imprensa em Portugal, aqui fica o meu reconhecimento. Obrigado, Nuno Rocha.