Vivíamos e continuamos a viver num regime em que há uma elite impune e imune. Alguns são expulsos do grupo, mas em termos gerais a regra seguida é a mesma: acordos tácitos que fazem com que alguns banqueiros e empresários tratem dos assuntos sem que a eles se apliquem as regras usadas para o cidadão comum. A isto junta-se, no Novo Banco, o que de pior tem o capitalismo sem rosto, de desresponsabilização, como se viu na prestação do presidente/funcionário da Nani Holding. Somem-se ainda os prémios que a gestão do Novo Banco se considera com direito a receber e temos um retrato aterrador. Um dia a casa da democracia vem abaixo sem que nos demos sequer conta disso. E com alguns dos principais protagonistas a mostrarem o seu espanto.

Não se esperavam grandes novidades de uma nova comissão parlamentar de inquérito agora focada no Novo Banco. Engano e devemos isso aos deputados, com especial relevo para Mariana Mortágua e Cecília Meireles. Os testemunhos têm-nos dado um retrato não apenas daquilo que era o BES de Ricardo Salgado mas também do que lhe sucedeu. Que, vistas bem as coisas, não foi muito diferente. A diferença é que, com menos dinheiro e com algum escrutínio adicional, alguns protagonistas deixaram de ser tão bem tratados como o eram no passado. Mas houve alguns, pelo menos ficámos a conhecer pelo menos um, que continuaram a ter um tratamento especial, como foi Luís Filipe Vieira.

Do que foi dito confirmámos algumas suspeitas. Uma delas é que o BES de Ricardo Salgado este atrás do designado “assalto ao BCP” financiando designadamente a família Moniz da Maia que, não tendo tido a sorte de Luís Filipe Vieira, acaba a perder toda a sua fortuna de família por causa da compra de acções desse banco. Uma estratégia em que esteve também envolvido Joe Berardo assim como a Caixa Geral de Depósitos. Compraram acções, hoje suspeita-se, com razões para isso, para controlarem o BCP e retirarem completamente do poder a equipa de Jorge Jardim Gonçalves. O Banco de Portugal, enquanto entidade de supervisão e na altura liderado por Vítor Constâncio, foi consciente ou inconscientemente cúmplice dessa guerra.

Outra das mensagens que encontramos nos grandes devedores – e que já tínhamos igualmente visto na CGD – é a recusa, de alguns deles, de assumirem as dívidas, chegando ao ponto, nalguns casos, de dizerem que estavam a fazer um favor ao banco. Joe Berardo, na comissão parlamentar de inquérito da CGD, foi o primeiro a usar esse argumento, a propósito da renegociação da sua dívida. Nesta comissão de inquérito ao Novo Banco ouvimos Luís Filipe Vieira dizer que fez um favor a Ricardo Salgado quando comprou a Imosteps. Nuno Vasconcellos usou um argumento próximo, mas dizendo que a dívida não era sua mas da Ongoing.

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Porque é que alguns empresários dizem isso? Hoje, olhando para os tempos de Ricardo Salgado, vemos que era um dos grandes criadores de empresários e de accionistas de bancos. Podemos adivinhar que o “favor” referido por Luís Filipe Vieira se replicasse noutros negócios com mensagens de despreocupação do género “isso depois resolve-se”. Como disse Luís Filipe Vieira, nunca lhe passou pela cabeça que o BES caísse, como não terá passado pela cabeça de outros grandes devedores do banco.  Tudo numa lógica do que uma vez disse José Sócrates, já não era primeiro ministro dessa era: “a dívida não se paga, gere-se”. Ricardo Salgado e alguns dos seus importantes clientes aprenderam da pior maneira que isso é válido com limites, que só são bastante alargados no caso dos Estados.

Mas na era pós-Ricardo Salgado também ficámos a saber que há uns devedores que são especiais. Luís Filipe Vieira é um deles, de tal maneira que o banco se pode transformar em seu sócio a muito curto prazo. O presidente do Benfica conseguiu a proeza de não pagar a dívida e de colocar o credor no papel de se tornar seu sócio. Tudo isto aconteceu apesar de o Fundo de Resolução garantir que o escrutínio que faz às necessidades de capital do Novo Banco é muito apertado, discordando das criticas do Tribunal de Contas.

Finalmente quando ouvimos o presidente da Nani Holdings, ex-consultor do Banco de Portugal quando trabalhava para o Deutsche Bank, percebemos bem os perigos do capitalismo sem rosto, destas sociedades que acumulam dinheiro de fundos e de investidores. O poder que têm de se desresponsabilizarem é enorme. Evgeny Kazarez é, na prática, um funcionário tal como António Ramalho. O que lhes permite dizer que tem de ser assim, que não há alternativa, sem que precisem de ter qualquer preocupação com a comunidade em que estão inseridos. Os seus capitalistas não têm rosto, nunca serão apontados como estando a explorar os contribuintes portugueses.

Finalmente os prémios à gestão do Novo Banco. Podem ser muito justos e completamente ajustados ao que se fez no passado – António Ramalho foi buscar o exemplo do BPI que pagou os prémios passados, depois de amortizar o empréstimo ao Estado. Mas o Novo Banco precisou de dinheiro que nunca devolverá ao Estado, a nós contribuintes. Além disso, hoje em dia os salários e prémios milionários estão longe de merecerem o consenso, até de accionistas de referência. Já esteve mais longe o tempo em que se vai concluir pela total irracionalidade dos salários milionários dos gestores, muito mais num país como Portugal.

O que se passou no BES foi muito grave, mas aquilo que se tem passado no Novo Banco não sendo uma história de “larápios”, como classificou João Gama Leão da Prebuild, deixa-nos a todos perplexos sobre o tratamento especial que foi dado a alguns devedores. Não, não é preciso perceber de finanças ou de banca para se ver que o que se tem passado na gestão das grandes dívidas ao ex-BES tratou uns de forma preferencial e fez pouco para perder o mínimo de dinheiro possível. Teria o banco sido gerido da mesma maneira se não tivesse os quase quatro mil milhões de euros do Estado para ir buscar? Aquilo que temos ouvido na comissão parlamentar de inquérito deixa-nos muitas dúvidas. Ficamos é com a desconfortável – e perigosa — percepção de que um grupo imune e impune. São os eternos afilhados do regime.