Soube-se há dias que, na Inglaterra, os livros de Enid Blyton, incluindo os dos Famous Five, foram reescritos para evitar ofender pessoas que se ofendem com o que está escrito em livros. A má notícia é que a reescrita foi insuficiente, limitando-se a substituir umas palavras e a suprimir outras. No essencial, aquilo permanece uma obra representativa da maioria branca, cisgénero e, logo, discriminatória. A fim de contribuir para o que deve ser a literatura juvenil inclusiva, susceptível de produzir gerações sadias, publica-se abaixo o primeiro capítulo de uma história realmente contemporânea de Os Cinco. Que sirva de exemplo aos capítulos que faltam. E a todx vós.
– Zé, estás nisso há horas! – disse a tia Clara – Descansa um pouco. Daqui a bocado não tens bateria…
– Sem stress: ainda estou com 40%. E estes TikToks a denunciar o bodyshaming estão brutais. Compraste bolachas? Estas acabaram…
– Comprei, filho. Vou à despensa trazer-te outro pacote. Depois manda-me os vídeos por Airdrop. Mas olha que os teus primos estão a chegar.
O Zé, José Luís, pronomes ele/dele, chamava-se assim desde que aos 14 anos iniciou tratamento hormonal. Nessa altura era a Zé, Maria José, demiboy cisgénero empenhada em causas diversas e com 1,60m. Agora, aos 15, era um rapagão com 112 quilos e 1,60m, o cabelo azul rapado dos lados e imenso orgulho em ser ele próprio. Após abrir a embalagem de bolachas, Zé olhou para o mostrador das horas no canto do telemóvel: – É bué tarde! Tim! Tim! – gritou.
Au! – disse Tim. Tim era diminutivo de Timóteo, um adolescente que se identificava como Golden Retriever. Zé, que detestava o irmão quando este se identificava como rapaz, adorava o Golden Retriever.
– Quem quer muito ir lá fora? – Zé afagava a cabeça do cão – Quem quer muito ir lá fora? Mãe, leva o Tim lá fora.
Nisto ouviu-se uma notificação do WhatsApp: os primos estavam na entrada do prédio. – Eles chegaram. – comentou Zé, ao mesmo tempo que dava like a uma publicação no Insta contra a disseminação de “fake news”. – Mãe, vai abrir a porta.
Olha quem está aqui… – sorriu a tia Clara. Quinze segundos depois, o Zé desviou o olhar do Insta e olhou para os primos: Júlio, pronomes ele/dele, Ana, pronomes ela/dela e David, pronomes cujo/outrem. Os três jovens eram irmãos e activistas. Naquela semana, sentiam-se profundamente motivados pela causa das alterações climáticas.
– Olá, tia! – cumprimentou Júlio – O tio Alberto não está?
– Olá, menines! O tio ainda está nas pesquisas dele. Só chega para jantar – informou a tia Clara.
– Alerta sexista! Alerta sexista! – Gozou Ana, levemente irritada com semelhante conformismo de género.
– Vou trazer-vos uns petiscos, disse a tia Clara, desaparecendo no corredor.
Júlio sentou-se no sofá ao lado do primo Zé e fez scroll no iPhone 14 Pro. – Ei, é novo! – exclamou Zé.
– Chegou ontem… – explicou Júlio sem olhar para o primo.
– Brutal. – concluiu Zé.
Sentados no chão, David e Ana brincavam com Tim, que não cabia em si de entusiasmo perante tantos visitantes. A certa altura, Tim urinou num vaso, o que provocou a gargalhada geral. Entretanto, a tia Clara regressara da cozinha com snacks para todos e um pires de larvas desidratadas para David, dieta que adoptara dois dias antes em prol da sustentabilidade ecológica. – E então, menines? Viram a nova story da Greta?
– Dãã! – respondeu a Ana. – Tem tipo dois dias! Mas está brutal, tia.
– Vocês viram, tipo, o olhar dela quando disse que o relógio do clima está a andar cada vez mais depressa? – perguntou David.
– Brutal, decidiu Júlio.
– E quando ela acusa os heterossexuais brancos de serem os culpados pela destruição do planeta? Até fiquei arrepiada! – acrescentou Ana.
– E os chineses não? – inquiriu a tia Clara, com um ar trocista.
– Isso é tipo racismo! – gritaram em uníssono os três irmãos.
– Que nojo, mãe! Já paravas, não? – berrou Zé, que continuava a olhar desconsolado para o velhinho iPhone 13.
– Calma! Eu estava a brincar… – esclareceu a tia Clara. – Sei muito bem que as ameaças ao planeta são sempre originárias no heteropatriarcado colonialista.
– O racismo sistémico não é brincadeira… – resmungou Júlio.
– Nem a emergência climática! – apressou-se David.
– É óbvio que não. Peço desculpa. – admitiu a tia Clara, que tentou mudar de assunto: – Não contas aos teus primos as novidades, Zé?
– Mãe, que seca!, impacientou-se Zé.
– Então? – indagou Júlio, curioso.
– Nada de especial. Na semana passada cancelámos uma homofóbica que ia ao liceu defender, tipo, a opressão das minorias. – desenvolveu Zé.
– Que máximo! – disseram os três manos em conjunto – Quem era a fascista?
– Uma nutricionista qualquer – sentenciou Zé.
– Recomendar, tipo, padrões físicos estereotipados é bué microagressão – contextualizou Ana, indignada.
– Senti-me bué microagredido, admitiu Zé.
– Estamos solidários contigo, primo! – confortou Júlio, que trocava mensagens com alguém. Tim voltou a urinar, desta vez nas calças.
A tia Clara levou o cachorro pela trela até à casa de banho. Ao voltar à sala estava contente. O Tim também estava. Ambos gostavam de ver o Zé com os primos, assim crescidos, unidos por uma forte sede de justiça social e, naquele exacto momento, pela contemplação dos respectivos telemóveis. – Menines, hoje começam as férias grandes! Quais são os vossos planos?
– Mãe, que chata! Chega-me aí a sweat preta – reagiu Zé.
– Negra, Zé: estás parvo? Mas sim, temos bué cenas para as férias, tia – respondeu David – Há dois ou três festivais de música com actividades ambientais. Há a vigília para derrubar a estátua de um cota tipo capitalista que está no parque. Há a organização da exposição dedicada a refugiados que vêm de países…
– E há aquela coisa do museu… – interrompeu a Ana.
– Iá! – excitou-se Júlio – Vamos colar-nos a uma pintura tipo antiga para protestar contra os combustíveis fósseis, acho eu… Ou a energia nuclear…
– Iá, é uma cena dessas – especificou David – Vai ser brutal!
– E vamos andar sempre pelas redes a descobrir cenas fachas para denunciar e proibir – detalhou Júlio.
– Espectáculo! – disse a tia Clara – Quem me dera ter a vossa idade para lutar por um planeta melhor…
– A tia é bué fixe! – constatou a Ana – Podes vir na boa a uma flash mob pelo direito dos trans à menstruação. É já na terça-feira.
– É que nem penses, Mãe! – zangou-se o Zé – Vai mas é buscar mais bolachas.
A tia Clara sorriu. Os primos riam às gargalhadas. Até o Zé pareceu divertido. E Tim, felicíssimo, abanava a cauda que não tem – Au! Au! – O Verão chegara e os Cinco estavam preparados para novas aventuras.
[Ouça aqui o primeiro episódio e aqui o segundo episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. A história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]