Há dias, prestes a começar um novo ano escolar, a propósito da definição em departamentos disciplinares de critérios de avaliação decorrentes do Perfil dos Alunos e da chamada “flexibilidade curricular”, um colega professor comentou: “lá vamos nós partir pedra mais uma vez”. Dei comigo a pensar que tenho participado, desde os anos 80, em ações de formação para professores onde são dadas orientações sobre como ensinar, como avaliar e como inovar. Em suma, andamos a inventar processos, metodologias e instrumentos, em muitos casos já inventados, já testados, e até, nalguns casos, abandonados.

Muitas vezes somos tratados como se não soubéssemos ser professores, como se não tivéssemos lido nada sobre educação, sobre como ensinar, sobre a aprendizagem, como se não tivéssemos reflexão e prática de trabalhar com alunos, de promover a sua aprendizagem e de avaliar o seu progresso.

E desde o princípio sempre me intrigou um aspeto essencial: os conteúdos desenvolvidos nessas ações de formação deixam de lado, com muita frequência, os critérios e a prática de avaliação. Lançam muitas ideias sobre motivação, sobre metodologias de promoção da autonomia dos alunos, sobre autoavaliação, sobre modelos de avaliação por competências, mas não especificam nem apresentam práticas e exemplos concretos de formulação de critérios e instrumentos de avaliação experimentados e com sucesso. Parecem querer transformar-nos a todos em professores “inovadores”, como se fosse legítimo transformar os nossos alunos em cobaias permanentes de experiências pedagógicas. O critério da qualidade está normalmente ausente.

Têm sido décadas de orientações, de legislação definidora, de prática, de especialistas de diferentes perspetivas a transmitir orientações sobre a “boa” avaliação. Tem sido todo um percurso profissional condicionado por orientações díspares, e com demasiada frequência pouco claras.

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Muito do que se concretiza nas escolas depende do conhecimento, da capacidade e da experiência do professor. E o professor deve ter autonomia para, em consciência e com responsabilidade, fazer as melhores opções para promover a aprendizagem dos seus alunos. No entanto, quando se chega à prática, muitos professores sentem-se constrangidos nas suas opções, limitados na sua prática, sabendo que poucos “especialistas” sabem e demonstram como concretizar, na prática do dia a dia, estas orientações e como planificá-la e aplicá-la de um modo consistente e exequível no tempo disponível. Parece que se esquecem dos limites e se ficam pelas finalidades.

De facto, muitos professores sabem como avaliar com critérios objetivos, baseados em conteúdos, capacidades e até competências específicas, uns mais essenciais ou estruturantes, outros complementares ou, acessórios, ainda outros transversais e que implicam trabalho colaborativo com outros professores e outras disciplinas. O que os professores não sabem é trabalhar com conceitos genéricos, definidores de finalidades que, em muitos casos, não são passíveis de avaliação.

Continuamos a ouvir e a ler que os professores não sabem avaliar, que são professores tradicionais, do século XIX, que apenas apelam à memorização, como se tivéssemos recuado à nossa infância e fizéssemos como faziam os nossos professores. Há muito que não fazemos. É o mesmo que dizer que não sabemos o que andamos a fazer e que temos feito tudo mal. Que outra profissão especializada admitiria este tipo de abordagem e de desconsideração?

Quando vemos a evolução positiva do trabalho dos nossos alunos ao longo das últimas décadas, quer em projetos e concursos nacionais e internacionais, quer em testes aplicados internamente e por entidades externas idóneas, quer ainda com os resultados da ação da escola, como a diminuição das taxas de retenção e de abandono escolar, perguntamos como é isto possível. E é o sucesso de todos os alunos que devemos promover. O sucesso da aprendizagem real, sustentada, de qualidade, apoiada na escola, no trabalho e no estudo, e posteriormente no percurso individual e profissional de cada um.

É que no meio de tantas orientações sobre inovação, ensino e aprendizagem por competências e avaliação de competências, damos por nós a trabalhar num sistema incoerente, que mistura conceitos e pressupostos inconciliáveis, que torna pouco claros objetivos de aprendizagem, numa amálgama de intenções difusas e difíceis, para não dizer mesmo impossíveis de aplicar, monitorizar e aferir.

Fazer tudo isto sem competências, pelo menos a crer no que nos dizem que não fazemos, só pode ser um milagre, pelo que só posso concluir que a educação em Portugal é fruto de um milagre, e que os professores, e os alunos, fazem milagres. Todos os dias.

 Professor e ex-Secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.