É claro que há sempre um formulário. Um código de conduta. Uma avaliação de desempenho. Um protocolo. Uma prova concursal. Um provedor do cliente. Um livro de reclamações. Um questionário de qualidade. Uma curva normal. Um manual de boas práticas. Ou uma comissão técnica. E mil coisas mais que fazem da burocracia uma rede de procedimentos criada para que o mundo se torne mais transparente. E, por inerência, mais justo; claro. Mas, depois, fica-nos a sensação que nem sempre estes instrumentos estarão, todos eles, aliados com a verdade. E que este ideal burocrático talvez nem sempre bata tão certo assim. Porque, doutro modo, não haveria tantas pessoas a reclamar pela humanizarão (da saúde), pela equidade (na justiça) ou pela transparência (na política), por exemplo. Ou seja, nem sempre a burocracia parece ter-se tornado o “atalho” mais seguro para se chegar até à honestidade e à justiça. E para que o mundo se torne mais humano.

Mas, nem por isso, a vida parece ser inseparável daquilo que é burocrático. A ponto dela ser pontuada por uma nova categoria de pessoas — os burocratas — que se tomam como “os donos da verdade”. Que parecem ter os mesmos trejeitos. Que adoram as reuniões intermináveis. Que, muitas vezes, falam para se ouvirem. Que confundem clarividência com populismo. E que olham para quem não burocratiza a vida, em todos os seus pormenores, como se essas pessoas fossem, sobretudo, “habilidosas”. O que faz com que elas estejam, quase permanentemente, sob um sufrágio (severo) por “mau comportamento”. Como se os “bem-comportados” fossem aqueles que aceitam as “regras da burocracia”, sem as questionar. (E esses se tomassem como os mais “honestos” entre os mais honestos.) E os “inadaptados” aqueles que entendem que os formatos esdrúxulos dos procedimentos burocráticos são, em muitos momentos,  obstáculos feitos de meias-verdades que parecem alimentar uma atmosfera com que se corrompe, muitas vezes, a verdade. “Arredondando-a”. Que faz com que as coisas, tal como as vemos e como as sentimos, por vezes, “não existam”, exactamente como elas nos tocam.

Seja como for, os exageros ou as mentiras da burocracia serão o exemplo das “más práticas” dum instrumento que nasceu para trazer paridade e honestidade ao mundo das pessoas. E que se ancora numa ideia de justiça. Logo, o problema da burocracia não é a burocracia. É o mau uso que se faz dela. E a forma como, amiúde, é vista, como o “lado A” da corrupção.

A verdade é que aqueles que transfiguraram um ideal de honestidade e de justiça numa rede de procedimentos que espartilham a liberdade e a verdade fazem parte duma categoria de pessoas que não nasceu com a burocracia; existiu desde sempre. Que se dissemina pela política, pela educação, pela justiça, por exemplo. E que são uma espécie de “rezingões da vida”. Que entendem que o mundo das pessoas carece de espartilhos. De unicidade. E de “bom comportamento”. Os “rezingões da vida” incomodam-se com a vida! Com a pluralidade e com o contraditório. Com as pessoas que acreditam. Com aquelas que se desassossegam. Ou com as que batalham, que se insurgem e que reclamam. Ou, ainda, com aquelas que, com a sua luz, pensam e interpelam. E, talvez por isso, os “rezingões da vida” se dêem mal com a cultura. Com a educação. Com a justiça. E com a liberdade, claro.

Como pode um mundo, tantas vezes afundado em ideias pré-fabricadas de bom comportamento, ser a casa comum de todas as pessoas? — será esse o desafio que temos em mãos. E como pode, em nome da inteligência e do bom senso, ter um rosto humano? E uma dimensão de equilíbrio para com a verdade que a todos nos una? E como pode, enfim, ser mais justo e mais honesto?

O mundo que inventou a burocracia (e que, em muitos momentos, se atolou nela) não seria, em muitos momentos, diferente do nosso. Era um mundo que se queria a si próprio mais justo. Mais honesto. E transparente. E que, mesmo com outras limitações, não se intimidou nem com os “donos da verdade”. Nem com os obstáculos feitos de meias-verdades que parecem alimentar uma atmosfera com que se corrompe, muitas vezes, a verdade. O mundo que não aprende com os seus erros não é o mundo da burocracia. É um mundo esdrúxulo feito de “rezingões da vida”. Que perdem a noção de perspectiva. E que entendem que o seu olhar é uma verdade tão inatacável que não carece de contraditório para ser verdade.

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