Repetindo um padrão que já se verificou em situações similares no passado, a referência no meu artigo da semana passada a Mário Centeno e Manuel Caldeira Cabral como “economistas de créditos firmados” suscitou várias reacções e comentários inflamados, alguns por parte de pessoas que estimo e considero.
Lamento, mas creio que essas reacções não têm qualquer fundamento, sendo que adicionalmente me parece fácil refutá-las recorrendo a informação publicamente disponível:
Publicações indexadas Scopus de Manuel Caldeira Cabral
Publicações indexadas Scopus de Mário Centeno
Tanto pelos respectivos CVs como pelos perfeitamente respeitáveis registos de publicações internacionais indexadas (considerando o que é a realidade das ciências sociais em Portugal) não vejo como poderão Mário Centeno e Manuel Caldeira Cabral deixar de ser classificados, precisamente, como “economistas de créditos firmados”.
Isso quer dizer que é obrigatório concordar com eles nas opções políticas que defendem ou sequer nas suas ideias sobre economia? Obviamente que não, mas confesso que me vai sobrando cada vez menos paciência para sectarismos partidários deste género, ainda para mais num país onde as grandes clivagens do debate político se dão entre socialistas democráticos e social-democratas.
Considerando adicionalmente que muito pouco de substantivo em matéria económica divide a ala moderada dos socialistas democráticos dos social-democratas, tudo isto se torna mais bizarro. Ou talvez não: quando as ideias, no essencial, pouco diferem, restam as clivagens pessoais tribais para estabelecer diferenças. Como nada de pessoal me move contra (nem, já agora, a favor de) Mário Centeno e Manuel Caldeira Cabral reafirmo que, no contexto português, são mesmo economistas de créditos firmados.
Aliás, tanto Caldeira Cabral como Centeno poderiam, se as circunstâncias fossem outras, estar nas listas da coligação PSD/CDS, o que torna as reacções inflamadas ainda mais descabidas. Pelo que percebo, o processo mental funciona mais ou menos da seguinte forma: Caldeira Cabral e Centeno seriam bestiais se estivessem na lista certa mas, dado que estão na lista errada, são obviamente umas bestas.
Quem argumenta sistematicamente nesta linha parece não pensar que, se os nossos opositores políticos são completamente desqualificados, o facto de sentirmos grandes dificuldades para convencer terceiros sobre a razão dos nossos argumentos relativamente aos deles também não abona particularmente a nosso favor. Daí que seja geralmente preferível tentar adoptar, na medida do possível, a postura de humildade intelectual defendida, entre outros, por Hayek. Numa sociedade aberta, devemos procurar refutar argumentos e ideias erradas e não atacar pessoas ou tribos.
É preocupante que em Portugal tantos alinhem por um processo mental e discursivo que segue os padrões típicos da extrema-esquerda – para quem todos quantos não partilham o respectivo programa extremista são necessariamente mentirosos, estúpidos e provavelmente traidores do “Povo”. Mais ainda quando o que está em causa é precisamente saber até que ponto o PS será capaz de evitar os riscos de syrização do partido.
Num país em que o “centro-direita” é social-democrata e promoveu um aumento sem precedentes da carga fiscal para garantir a manutenção do modelo vigente de Estado Social, o risco de o PS deslizar para a extrema-esquerda não deve ser desvalorizado. E nesse aspecto não é obviamente indiferente que na orientação económica do principal partido de centro-esquerda vozes como a de Centeno e Caldeira Cabral se imponham sobre as de adeptos confessos do radicalismo do Syriza.
Quando Mário Centeno, contrariando declarações anteriores de destacados membros do PS, vem assegurar publicamente que o PS “não vai pôr em causa as regras” nem tentar reestruturar a dívida pública isso é relevante.
Quando o PS tem nas suas listas Paulo Trigo Pereira que, ao contrário de António Costa, defende a introdução de um limite ao défice e à dívida na Constituição isso é relevante.
Quando até João Galamba, que ainda num passado muito recente havia revelado grande entusiasmo pelo Syriza, explica publicamente que a medida de redução da Taxa Social Única (TSU) para a Segurança Social proposta pelo PS excluirá os funcionários públicos isso é relevante.
Percebo que quem está directamente envolvido numa disputa eleitoral possa ser levado a pensar que os fins justificam os meios, mas mesmo as justificações utilitaristas de curto prazo para o sectarismo são insustentáveis se considerarmos que existe uma probabilidade razoável de socialistas democráticos e social-democratas se precisarem de entender uns com os outros depois das eleições de Outubro.
* Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa