As televisões enchem-nos de equipamento militar para letrados – ou é iletrados? – na matéria. Um dia destes seremos, sim, todos sabedores do que é uma AK-47, uma AK-74, uma IPI Malyuk, uma FN FNC ou uma FORT-227. Saberemos todos o que são tanques T-64BV, BMP-2 ou BMP-3 e perceberemos o que é um veículo de combate HUMVEE M1114 ou um sistema de mísseis terra-ar S-300P/PS/PT. Ah, esquecia-me, ficaremos igualmente a saber usar a linguagem do armamento do lado russo e familiarizados com uma PP-19 Vityaz, uma SR-2 Veresk, uma AKM ou PKP Pecheneg e os 9M133 Kornet, mísseis guiados anti-tanque, ao que devemos adicionar os 2S5 Giatsint-S em artilharia pesada, os 2S34 Chosta ou os 2S19 que são – ou não são? – para levar a sério. Como também os lança mísseis terra-ar 9K33 Osa ou os 9P149 Shturm-S/SM com sistemas de mísseis auto-guiados anti-tanque.

Bom, também temos – eu certamente tenho e já interiorizei – de saber que um Z. não pode ser a minha assinatura num final de um email, como podia ser tentado a fazer, e fazia, antes da guerra. A verdade é que Z. significa “pela vitória”. Só que não quero o meu Z. associado à vitória russa.

Gostava, porém e no meio de tudo isto, que alguém me explicasse coisas simples. Há tanto sofrimento, tantas vidas perdidas, comprometidas e adiadas, porque a guerra é sempre, inexoravelmente, uma sucessão de eventos de horror, e temo-lo visto com ataques a vidas humanas por todo o lado, que a minha questão é porque servimos dia após dia estes pratos televisivos como sendo gostáveis, degustáveis e sempre aceitáveis? Achar-se-á, certamente, que isto é bom para a economia, para a saúde mental de todos nós e para o futuro da economia?

Debater futebol à exaustão ainda pode levar-me à caixa vazia. Cérebro zero e desligar para relaxar. Mas guerra apenas contribui para alarme e estimulação dos sinais de perigo, de defesa e de exponenciação do medo. Pode ser paralisante. A menos que nos queiram todos atordoados como se estivéssemos numa das salas de Tintim no Loto Azul – será uma espécie de opiáceo o que nos estão a servir?

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Julgar-se-á, porventura, que os senhores coronéis, generais, majores-generais e simpáticos elementos femininos a falar de guerra nos trazem algum ânimo, paciência redobrada para mais setas e risquinhos em mapas e em computadores de grande ecrã, para mais disponibilidade a debater os poderes escondidos do Poseidon, aquele submarino russo que ora é considerado perigoso ora é apenas um fake alarm que não tem potencial nuclear algum?

O prato que nos está a ser servido é, de resto, requentado. Vimos isto com a pandemia, onde a utilidade das múltiplas opiniões acabou por tornar o cenário nada mais senão patético e apenas com efeitos secundários no mood e na paciência de todos nós. Está-se a passar exatamente o mesmo com as explicações ad nauseam da guerra.

Será que não nos deveríamos concentrar em colocar os senhores da guerra num programa por semana, numa hora específica, em vez de os servirmos de forma reiterada e permanente depois do jantar? Será que tudo isto é construtivo? Será que o share ou o reach das televisões e rádios e media não poderia ser maior se fizéssemos de outra forma?

É do senso comum e do conhecimento de todos que há demasiadas perturbações relacionadas com ansiedade, depressão, medo, distúrbios comportamentais, abuso de substâncias químicas e alcoólicas, elevados níveis de insegurança, alteração de poderes de ressignificação, aumento da falta de esperança no futuro, diminuição da procura de sentido e propósito de vida e angústia descontrolada quando somos expostos permanentemente às imagens e à violência da guerra.

A quem importa isto? A alguém? Ao país que temos? Ao mundo para o qual queremos contribuir? Ao país que queremos ser? Ao país e ao mundo pelo qual lutamos? À economia que procuramos preservar? Às empresas que queremos ver prosperar? Ao trabalho que queremos sustentar e fazer? Ao bem-estar pessoal e profissional? Não, não vale tudo e seria importante refrear estes ânimos de “serviço” à guerra. Seria crítico arrumar estes senhores da guerra em slots fora de horas. Porque não queremos certamente compactuar com este tipo de sinais perversos dos tempos. Meras acefalias.

Proposição: sempre que estiveres em frente a um ecrã a perder tempo e a consumir saúde com obuses, AK-47’s, AK-74’s, IPI Malyuk’s, FN FNC’s ou FORT-227’s e quejandos, pensa no que estás a fazer e levanta-te. Vai antes dar uma volta e ouvir o vento. Porque ao ouvires o vento, pelo menos, terás a vantagem de perceber que porque o ouves soprar já valeu a pena teres nascido (diria Fernando Pessoa), assumindo isso mesmo como coisa boa e positiva. Não precisas, pois, de te consumir e de “morrer no écran da guerra” que todos os dias te preparam. Corta. Já basta os que perdem a vida, de facto, no teatro horrendo com que todos os dias te presenteiam. Ajuda-te, já que não serão os senhores da guerra a fazê-lo. Nem tão pouco as televisões que lhes dão palco.