A semana passada o chanceler alemão Olaf Scholz publicou um artigo na Foreign Affairs para, à maneira americana, comunicar à inteligência internacional a política externa de Berlim para o pós-guerra da Ucrânia.

A Alemanha muda radicalmente o seu papel internacional: autonomeia-se “o garante da segurança europeia” esperada “pelos aliados”. Por outras palavras, Berlim torna-se, de certa medida, uma espécie de hegemonia na União Europeia. O sinal já estava dado, quando, dias depois do início da Guerra na Ucrânia, o chanceler discursou no Bundestag anunciando um reforço de 100 mil milhões de euros para a modernização das Forças Armadas alemãs para as tornar “as mais bem equipadas da Europa”. Estava lançado um novo tipo de aproximação ao mundo, espelhada no artigo publicado esta semana.

A Alemanha quer ser líder de um continente que tem um novo inimigo e precisa de uma nova arquitetura de segurança. A Europa foi construída e devidamente desmilitarizada a partir dos anos 1990 a contar com a amizade russa em suposta transição para a democracia. Esta não só não aconteceu como a Europa se deixou embalar pelo sonho de que o expansionismo imperialista de Moscovo tinha limites e não incomodaria a sua Paz Perpétua. Acordada para uma nova realidade – mais vale tarde que nunca – a Alemanha propõe desempenhar o papel que está vazio na Europa (se excluirmos o Reino Unido): a liderança não só económica como política (informal) da União. Até aqui, o passo de Scholz faz todo o sentido.

No entanto, há um problema fundamental com a segunda premissa plano Scholz – ser líder da Europa tentando evitar a todos o custo “uma segunda Guerra Fria”. Não existe sistema em transição de poder, como o atravessamos agora, sem conflitualidade e, quer Scholz queira quer não, a sua configuração conflitual não depende da União Europeia nem da Alemanha.

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Por muito que Berlim e o pilar Europeu da NATO se robusteçam não será suficiente para travar a competição entre os Estados Unidos e a China. Nem para saber em que moldes acabará a Guerra da Ucrânia e que tratado de paz dela saíra. Uma Rússia “vencida” é diferentes de uma Rússia “não completamente vencida” ou de uma Rússia “vencedora”. Como Scholz (e também Macron, uma vez que o eixo franco alemão é apresentado como o garante de estabilidade desta nova política externa) perceberá a seu tempo, a neutralidade é uma espécie de luxo a que uma potência regional a fazer a sua militarização, ou seja, num momento de fragilidade, não se pode dar. A II Guerra Fria já começou e quanto ao seu papel no conflito, a Alemanha e a Europa não têm escolha.

Foi exatamente o que percebeu Shinzo Abe. O antigo primeiro-ministro do Japão, assassinado esta Verão, ficará na história como o homem que voltou a dar projeção a Tóquio no sistema internacional. Quando Donald Trump ainda era presidente, Abe criou a política externa que impera hoje na Ásia. Chama-se “Indo-Pacífico” e consta de uma rede de alianças na região, onde figuram os Estados Unidos com ator central e onde o principal objetivo é conter a expansão da China.

A teia multilateral foi construída com jeitinho. Shinzo Abe viajou discretamente a um conjunto de capitais asiática para explicar aos chefes de estado porque o “Indo-Pacífico” era a única forma de não serem engolidos pelo gigante chinês. Quando Washington “revitaliza” o Diálogo Quadrilateral de Segurança, em 2017 – presentemente a aliança central no continente asiático – na verdade o QUAD já tinha reemergido por aturada diplomacia do líder japonês. E seguiu-se o AUKUS e o reforço de um conjunto de relações bilaterais que, quer venham a ter sucesso quer não, são uma teia muito semelhante à construída na Europa no início da Guerra Fria.

Abe e os seus sucessores não temem a afirmação da sua posição internacional. Ao contrário de Scholz, o que receiam é que o seu inimigo comum ganhe força por desorganização ou ausência de contenção. Ao contrário da Europa, vêem o segundo conflito bipolar como inevitável, e mais vale estarem preparados do que serem surpreendidos. Temos alguma coisa a aprender com a posição asiática, onde, em termos globais, se joga muito mais que na Europa.

Uma nota final: os vencidos da II Guerra Mundial são os pivots essenciais da II Guerra Fria. São os aliados regionais sem os quais Washington não tem capacidade de fazer face aos tempos que se avizinham. Pode-se ter dúvidas – legítimas, de resto – quanto à capacidade de Berlim levar a sua empreitada a bom porto por várias razões incluindo a mencionado no artigo. Mas parece que é certo que vai tentar. E que poderá até conseguir, devido à determinação russa de levar a cabo os seus planos expansionistas.