À primeira vista, não se percebe: António Costa pretende, segundo diz, manter Portugal no euro, mas o seu governo depende de partidos contrários ao euro; vive do ódio à direita, que acusa de ter empobrecido o país e de conspirar contra a pátria, mas não perde uma oportunidade de sugerir “consensos políticos amplos” ao PSD. Contraditório? Não, contraditório não é a palavra. Estamos perante outra coisa: uma maneira de não optar, de manter tudo em aberto. Costa contestou a política europeia, e está agora ao lado do PCP. Mas não deseja tirar daí nenhuma grave consequência. Entretanto, ajeita o Orçamento todos os dias, no meio da maior agitação de taxas de juro desde 2012.
António Costa desconfia, como todos os outros oligarcas, de que há um lugar do morto na política portuguesa. Alguém vai ter de expiar o fim das ilusões. Mas quem? Ninguém sabe, e todos os partidos têm esperança de que seja o outro. A questão é não se deixarem apanhar, não se deixarem definir, e, pelo contrário, tentarem definir e marcar os adversários. O PS diz que o PSD é austeritário e neo-liberal, e o PSD diz que o PS é despesista e radical. Nenhum deles, porém, ousa dizer, em relação a si próprio, o que é e para onde nos quer levar. Nenhum deles quer dar um passo em falso, nenhum deles se quer comprometer. Por isso, o PSD não fez mudanças estruturais e toma agora lições de António Guterres, e o PS discorre com fervor sobre “consolidação orçamental” e disfarça os confrontos com a Comissão Europeia. Ocorre a repreensão bíblica: “não és nem frio, nem quente. Oxalá fosses frio ou quente”.
As diferenças são todas de nuance, a que só a chicana política dá depois profundidades de abismo e de apocalipse. A verdade é que todos, quando teve de ser, cortaram salários e pensões; e todos, quando pôde ser, aumentaram salários e pensões. Dir-me-ão: são pragmáticos, ainda bem. Não, isto não é pragmatismo. É apenas indefinição. O que nenhum oligarca fez, mesmo quando teve de ser, mesmo quando podia ser, foi afrontar o Estado clientelar, conhecido pelo eufemismo de “Estado social”, que todos, à vez, desenvolveram nos últimos quarenta anos. De fora, dizem-lhes que talvez seja a única maneira de reanimar uma economia que diverge da Europa desde o princípio do século. Mas os oligarcas hesitam. Em quem se apoiariam para as “reformas”, quando eles próprios reduziram a cidadania em Portugal a uma massa envelhecida de funcionários e de pensionistas? Mas por outro lado, também sabem que não podem dispensar o BCE. Por isso, dá-se quando se pode, tira-se quando é preciso. Deu-se em 2009, e por isso teve de se tirar em 2011; tirou-se em 2011, e por isso pode dar-se em 2016: para tirar quando, outra vez? As “medidas adicionais” já estão preparadas. Andamos à roda. As mesmas ideias, as mesmas acusações, os mesmos medos vão e vêm, como num carrossel.
O mais extraordinário de toda esta história é que, do ponto de vista político, nada de fundamental parece ter acontecido. Vivemos entre austeridades. Mas onde está o nosso PASOK afundado, os nossos PP e PSOE a 20%, o nosso Syriza ou a nossa Frente Nacional a adiantarem-se? Ninguém entrou em colapso, nada apareceu de novo. PSD e PS mantêm-se acima dos 30%. O BE teve em 2015 menos votos do que em 2009 (550 mil versus 557 mil). Mais deputado ou menos deputado, o parlamento conserva a estrutura dos últimos quinze anos. Os balanços políticos são inconclusivos. Nenhum partido perdeu ou ganhou decisivamente. O PSD ficou fora do governo, mas venceu as eleições. O PS perdeu as eleições, mas está no governo. As sondagens não desempatam. Ninguém sabe ao certo para onde vamos. Tudo ainda pode acontecer, sobretudo se o BCE fechar a mão. E é por isso que o PSD e o CDS não são liberais, o PS não é radical, e até o PCP e o BE são discretos sobre as cedências do PS à comissão europeia. Esperam, poupam-se, não arriscam. Quem está no lugar do morto? Um deles, todos eles — ou todos nós?