Quando os caubóis brasileiros querem atravessar um rio cheio de piranhas, escolhem uma vaca velha, põem-na na água e esperam que os peixes se banqueteiem com ela. Chamam-lhe o “boi de piranha”. Com as piranhas distraídas, passam o resto da manada em segurança. Foi isso que Jerónimo de Sousa fez na entrevista da semana passada. Lançou o já batido tema da Coreia do Norte como “boi de piranha”, a atenção mediática atirou-se a isso como, lá está, piranha a boi, e o resto das declarações passaram incólumes.
Como toda a gente, sucumbi ao anti-comunismo primário e foquei-me no já habitual amparo do PCP à ditadura coreana, quando devia ter tido calma e ouvido o meu anti-comunismo sofisticado, que me dizia para prestar atenção à disputa laboral entre o PCP e Miguel Casanova. Casanova é um ex-funcionário do Partido que foi assediado pelo patronato, castigado por delito de opinião e, posteriormente, despedido – ou, como sumarizou o Secretário-Geral do PCP, “questões internas”.
Com a manobra de diversão, Jerónimo sacrificou a já esgaçada coerência em questões de democracia, por um bem maior, a postura do PCP nas relações laborais. E lá fui eu, como patinho, apontar impostura no extremo-oriente, quando a tinha aqui tão perto, na margem sul.
Miguel Casanova, filho de um antigo dirigente comunista (o que significa que não tem a desculpa de ter sido apanhado de surpresa pela tolice ideológica) era funcionário da Organização Regional de Setúbal. A partir de 2015 começou a criticar abertamente a opção do PCP em apoiar o Governo do PS. Em retaliação, o PCP transferiu-o para a Quinta da Atalaia, no Seixal. De um trabalho burocrático, passou para uma “função técnica” no recinto da Festa do Avante. Casanova recusou a transferência, continuou a apresentar-se no posto antigo e acabou despedido. Agora, está tudo no Tribunal do Trabalho. (Quer dizer, tudo, tudo, não: Jerónimo, apesar de arrolado como testemunha, aproveitou-se do seu estatuto de deputado para se furtar a comparecer).
Estou chocado. Nunca pensei que o PCP não cumprisse a lei laboral. Mas o PCP está ainda mais chocado: nunca pensou que fosse obrigado a cumprir a lei laboral. Pelos vistos, escrevê-la é uma coisa, obedecê-la é outra. Como José Capucho, dirigente comunista, disse em Tribunal, “as normas de funcionamento do Partido são superiores a qualquer lei laboral. É-se funcionário do Partido enquanto o Partido quiser”. Frase que terá colocado todos os funcionários do PCP de sobreaviso sobre a segurança dos seus postos de trabalho. Tirando, obviamente, José Capucho: ao dizê-la, agradou ao patrão e garantiu o emprego durante mais alguns anos.
A questão aqui não é a incoerência de quem defende afincadamente uma posição e, na prática, age de maneira diferente. (Substitua “Partido” por “Sonae”, depois envie para o Partido, conte até 15 e veja o que o Partido diz sobre a Sonae). Este é o tipo de hipocrisia expectável em organizações com elevado grau de radicalismo. A questão é que o PCP participa na elaboração de leis sobre uma realidade que desconhece.
Vejamos: parece-me óbvio que Miguel Casanova é aquilo que, no mundo das empresas, se convencionou chamar de “chato”. Além de questionar as decisões da entidade patronal, deve ter começado a aborrecer os colegas com quem discordava, que se fartaram da superioridade moral de um comunista puro a acusá-los de se terem vendido à burguesia socialista. Inquinou o ambiente de trabalho e é natural que tenham querido correr com ele. Mesmo no PCP, é muito giro o fanático que grita num comício, mas já não é tão divertido quando continua a gritar na secretária ao lado. Devia ser possível despedi-lo. Só que a legislação laboral portuguesa faz com que seja quase impossível demitir alguém pela ninharia de dizer mal do patrão em público e de não se relacionar cordialmente com os colegas. Legislação laboral essa que deve muito ao PCP. Que, está visto, faz as leis com base numa ideia de relações laborais que não corresponde à realidade. Mais do que sonsice, o problema do PCP é a falta de conhecimento numa área onde teima em interferir, apesar de ser incompetente para o fazer.
No fundo, é o que aconteceu no BE, com o caso de Robles. O problema não foi um dirigente querer fazer um negócio milionário, contra os princípios éticos da agremiação. Foi acharem, Robles e o Bloco, que comprar aquele prédio por 6 milhões de euros, para Alojamento Local, era, de facto, um negócio milionário. É que bastava fazer contas ao investimento (aquisição, IMT, decoração dos apartamentos) e aos custos de exploração (salários, seguros, manutenção, electricidade, IRC, etc.), para perceber que as receitas não cobriam as despesas do investidor. Aquilo não era um negócio milionário porque nem chegava a ser negócio. Robles não foi ganancioso, foi ignorante sobre o que implica ser empresário. E, ao não perceber a diferença, o BE mostrou que, tal como Robles, não sabe o que é ter negócios. No entanto, não faz outra coisa senão indicar às pessoas como devem gerir os seus.
Se já não deixamos que sejam padres a dizerem como é que nos devemos comportar na fornicação, porque é que continuamos a deixar que sejam comunistas a dizerem como nos devemos comportar na economia? Quer uns, quer outros, não têm prática nas áreas que pretendem regular. Deve ser isso que leva os padres a serem económicos na fornicação e os comunistas a fornicarem a economia.