Há uma passagem do Ricardo II de Shakespeare que vive comigo desde que primeiro a li. É no princípio da quinta cena, a penúltima da peça, do acto V. Ricardo encontra-se na sua cela e em breve será assassinado. Entretanto, vai tentando comparar a prisão onde vive com o mundo. Mas o mundo é povoado por homens e na sua cela ele está sozinho. É, no entanto, preciso convocar a presença humana. E, para isso, “o meu cérebro tornar-se-á a fêmea da minha alma; a minha alma será o pai: ambas engendrarão uma geração de ideias constantemente produtoras e todas essas ideias povoarão este pequeno mundo, e povoá-lo-ão de inconsequências, como é povoado o universo; pois não há pensamento algum que se satisfaça”.
Em circunstâncias menos trágicas, tal é a experiência do leitor, com a diferença que o cérebro e a alma se encontram nos livros, nos quais a procriação das ideias se oferece como espectáculo a quem os lê. Dependendo daquilo que se poderia chamar a nossa energia de crença, as personagens engendradas pela imaginação do autor vão preenchendo essa particular cela que é a nossa mente. As personagens vão saindo da noite do mundo e passamos a viver no meio delas, como se a prisão não existisse, nem a nossa solidão.
Ando, por razões profissionais, a reler aquelas que são talvez as duas maiores obras de prosa do nosso século XIX, o Portugal Contemporâneo e Os Maias. E, sem surpresa, constato mais uma vez que as personagens do livro de Eça se imprimem na memória de um modo muito mais claro e definido do que as de Oliveira Martins. Não me surpreendendo, como disse, a coisa maravilha-me. Mesmo sabendo muito bem a razão de isto ser assim: a diferença entre os géneros literários que são o romance e a história.
É que, no primeiro caso, as personagens são por inteiro, no que possuem de mais relevante, uma criação do autor e os seus gestos e intenções têm, tanto quanto possível, uma forma acabada que não apela, para a sua compreensão inteira, a nada de exterior ao romance, pelo menos no que ao prazer da leitura diz respeito. Para as conhecermos integralmente, basta-nos a leitura do próprio romance. Se se quiser, por exemplo, saber quem são João da Ega ou Dâmaso Salcede basta-nos ler Os Maias. Não é preciso andar a buscar noutros livros características que nos ajudem a identificá-los. Eles estão ali inteiros, de corpo e alma.
No caso das personagens históricas, a situação não podia ser mais diferente. Por mais efectivos que sejam o estilo, o saber e a visão do historiador, por maior que seja o seu poder não só de persuasão, mas de convicção, há sempre um resto que sobra, e esse resto temos de o ir procurar noutros livros, que nos ajudarão eventualmente a corrigir a imagem que o livro que lemos nos dá. Em Oliveira Martins, por exemplo, D. Pedro. Será que o seu traço dominante era a vaidade, como Oliveira Martins não se cansa de repetir? Para as personagens do Portugal Contemporâneo, mesmo nos casos que nos aparecem dotados de uma maior evidência, como o de Teles Jordão e do seu filho, “o menino”, que logo se fixam na memória, temos de confrontar Oliveira Martins com outros historiadores, como, limitando-nos aos nossos contemporâneos, Vasco Pulido Valente, Maria de Fátima Bonifácio ou Rui Ramos. Mais, talvez, até nos casos em que a caracterização de Oliveira Martins é razoavelmente unívoca – a daqueles que escapam à sua crítica impiedosa do liberalismo: Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Herculano e, em parte (por causa do Frei Luís de Sousa), Garrett, quase todos “vítimas” – do que quando – como D. Miguel ou Saldanha – ele usa de um estilo que, para nos dar a imagem da vida, é feito de caracterizações contraditórias, e que é, de resto, extraordinariamente conseguido.
Se isto é assim, é por uma razão simples de perceber. É que a história conhece um abismo que o romance ignora. O abismo é o da existência real passada. É – vale a pena usar aqui o jargão filosófico – um abismo ontológico. Lidamos, na história, com personagens que existiram realmente no passado, e o puro facto dessa existência constitui um resíduo que não é nunca inteiramente capturável pelo espírito. A “revivescência” que Michelet procurava, e que Oliveira Marins buscava também, deixa sempre margem para a pergunta ingénua, mas imprescindível, porque nela se encontra a maravilha da história: terão sido realmente assim? Uma pergunta que, obviamente, o romance não nos convida a fazer.
A história mostra-nos incansavelmente, com um sucesso variável, que o passado existe (não digo: existiu; digo: existe). Quando o consegue de forma satisfatória, é um milagre maior, sobretudo nos nossos tempos, em que tudo conspira para, por processos frustes ou subtis, o negar mais ou menos selectivamente. No romance não é assim. Também por uma espécie de milagre, embora de natureza muito diversa, tudo, mesmo que o romance lide com um tempo distante do nosso, aparece dotado da evidência do presente. Porque o romance não conhece o abismo que a história conhece. Não há nele qualquer existência real passada que resista à captura do nosso espírito. Os Maias comunicam directamente com o nosso presente, sem necessidade de mediações ou explicações. Aristóteles, e depois dele Schopenhauer, tinham razão em afirmar que a poesia (e é legítimo acrescentar: o romance) é mais universal do que a história, que se encontra presa ao contingente. Mas é preciso acrescentar que é o contacto sempre precário com esse contingente, esse contingente cuja existência é um enigma perpetuamente renovado, que torna a história um dos mais fascinantes géneros literários.
De qualquer maneira, romance e história, através dos seus tão diferentes procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa cela. E cada um dos géneros permite-nos pôr no devido lugar os fantasmas carcereiros que nos gritam a reivindicar a nossa atenção à sua dúbia existência. Por estes dias: Costa, Marcelo e Rio. E, pondo-os no seu devido lugar, vamo-nos protegendo, na medida do possível, do péssimo espectáculo que eles, presenças humanas que não apetece convocar, nos dão. Não é pouco.