Havia pano para mangas. Do governo britânico esclarecer que um ovo escocês conta como refeição pesada, tornando a caneca de cerveja legal como acompanhamento, ao telefone do governador do Arizona tocar a “Saudação ao Chefe”, expondo que era Donald Trump quem lhe ligava, o mundo fez-nos rir várias vezes esta semana. Por cá, menos sorridentemente, o debate entre as direitas prosseguiu, com António Araújo e Fátima Bonifácio a protagonizarem um grand finale, e recordou-se, ontem, o quadragésimo aniversário da morte de Sá Carneiro e Amaro da Costa.
Tudo isto daria bons textos, em resposta, homenagem ou humor, mas nenhum deles tão irónico quanto o surgimento de Augusto Santos Silva como consciência de António Costa no que concerne ao Estado de Direito na Europa. Sendo que, originalmente, Pinóquio mata o grilo à martelada, Costa e Santos Silva mantêm uma maior suavidade na sua coexistência: nem o nariz do primeiro cresce, nem a casaca do segundo desce.
O primeiro-ministro, olhando a União Europeia como um mealheiro que vale a pena partir na busca das moedas, coloca em pé de igualdade os países frugais, que não querem cá mãos largas, e os iliberais, cuja ideia de democracia é curta. Para Costa, em resumo, um autocrata convicto é tão condenável quanto um democrata sovina ‒ o que simboliza bem o esplendor dos seus princípios, eventualmente mais leves do que o tal ovo escocês, mas definitivamente menos dignos de brinde. Em julho deste ano, o primeiro-ministro já havia afirmado que o respeito pelo Estado de Direito não deveria ser uma condição para o acesso aos fundos de recuperação.
De forma tocante, Santos Silva veio agora em pronto-socorro, assinando uma página inteira no mesmo jornal que havia denunciado o situacionismo ideológico-orçamental do governo português. A sua grande conclusão, para quem conseguiu ler até ao fim, vai ao encontro da “vulnerabilidade” da nossa imprensa àqueles que querem “impedir o escrutínio das derivas autoritárias” e àqueles que querem “impedir” que o dinheiro chegue. Posições opostas, mas em simétrica penetração nos nossos jornais, vaticina Santos Silva. A culpa não é do governo; é da comunicação social, incapaz de resistir aos encantos de uma continental coligação de neoliberais-fascistas. Amanhã, depois desta, talvez alegue fraude eleitoral nos Açores. Depois de amanhã, se necessário, jogará gamão com André Ventura.
Com sinceridade, estou solidário com o ministro. A culpa, na verdade, não é sua. O Partido Socialista, no seu longo ciclo de poder, foi apanhado pelo mais cruel dos fatores políticos: o tempo. É ele que sujeita os decisores à incoerência e, se em excesso, à descredibilização. Foi isso que sucedeu quando Carlos César, que acusara a direita de querer “inverter o resultado eleitoral” em 2015, veio reclamar uma vitória do PS açoriano em 2020. Foi isso que aconteceu quando Ana Catarina Mendes, que defende alianças com um partido estalinista, veio levantar o dedo ao PSD por negociar com o Chega. Foi isso que provocou um coletivo ataque de riso nos que ouviram António Costa garantir que “os portugueses não perdoam oportunismos”. E é também isso que se está a passar com o primeiro-ministro nas matérias europeias: já ninguém sabe exatamente o que representa, além de si próprio e do seu futuro político.
Que Augusto Santos Silva, pela primeira vez ministro há vinte anos, seja indiferente às contradições que o rodeiam, não surpreende. Que o governo se julgue imune à descredibilização de todas estas incoerências, não se compreende.
Será falta de noção?
Não sei.
Mas Francisco Sá Carneiro faria oposição a isto.