É difícil negar que as políticas de planeamento familiar no último século contribuíram de forma notável para o desenvolvimento da sociedade. Especificamente, o crescente reconhecimento dos direitos reprodutivos da mulher permitiu um maior acesso a educação à escala mundial das mesmas, possibilitando que se tornassem cada vez mais economicamente autónomas. A influência destas políticas de planeamento familiar é tão marcante que vários investigadores consideram ser o primeiro passo para acabar com a fome no mundo (os menos atentos pensarão, de forma simplista, que o aumento do recurso à contraceção dita a diminuição do número de bocas para alimentar; mas o facto é que o maior contributo do planeamento familiar para acabar com a fome é permitir que uma maior fração da população mundial possa contribuir de forma ativa para a economia mundial e, consequentemente, podermos todos produzir e comprar mais alimentos). Consciente destes contributos inegáveis da introdução do conceito de planeamento familiar na sociedade, ao ler esta semana um estudo científico largamente publicitado nos media, a demonstrar que as nossas taxas de fertilidade à escala mundial estão cada vez mais diminutas, enquanto médico que trata diariamente casais com infertilidade, dei comigo a questionar onde é que, neste caminho bem-intencionado, perdemos o foco principal do planeamento familiar: permitir que as mulheres que desejam ser mães (um desejo manifesto por mais de 90% das mesmas) o possam ser no momento ideal das suas vidas.

Com o aumento da urbanização e a participação crescente das mulheres no mercado de trabalho, muitos casais adiam a decisão de ter filhos em busca de estabilidade financeira e de carreira. No entanto, quando olhamos para trás para tudo aquilo que, enquanto sociedade, já conseguimos juntos, acabamos por perceber que, pouco a pouco, as políticas de “planeamento familiar” têm sido substituídas por estratégias que tiveram apenas como objetivo o “adiamento familiar”. Provavelmente tal aconteceu de forma inusitada, mas o facto é que os vários desenvolvimentos sociais que permitiram aos casais poderem planear a sua paternidade para uma melhor altura não foram acompanhadas por políticas que permitissem que essa “melhor altura” algum dia chegasse. Prova disso foi a vitória da contraceção (que é utilizada por praticamente todas das mulheres em alguma fase da sua vida reprodutiva e frequentemente por largos períodos) ser tendencialmente gratuita, enquanto os medicamentos que auxiliam os tratamentos de fertilidade, usados por curtos períodos e por uma minoria da população, serem considerados menos relevantes e, por isso, terem uma comparticipação bastante inferior. São as mesmas políticas que teimam em não aumentar o acesso no sistema público à fertilização in vitro, preservação de fertilidade ou inseminação intrauterina com sémen doado, forçando-as a procurar tais soluções no privado.

Perversamente, ao investirmos quase tudo o que temos orçamentado para planeamento familiar maioritariamente na componente de adiamento, fomos paulatinamente criando uma nova alteração climática, o inverno demográfico. Este termo descreve uma tendência de queda na taxa de natalidade e no crescimento populacional em muitos países do globo, algo a que a União Europeia, e especificamente Portugal, não ficou ileso. Várias razões contribuem para este declínio da taxa de natalidade, sendo um dos fatores-chave a mudança nos padrões sociais e económicos que levaram a uma redução das taxas de natalidade e ao envelhecimento da população. No seu conjunto, a proporção de idosos na população cresce, enquanto o número de jovens em idade reprodutiva diminui, criando desequilíbrio demográfico que sobrecarrega os sistemas de segurança social e de saúde, além de reduzir a força de trabalho disponível. Com menos pessoas em idade produtiva, a capacidade de uma nação de inovar e competir globalmente será certamente comprometida. Além disso, a demanda por bens e serviços, especialmente aqueles relacionados à infância e à família, pode diminuir, afetando setores inteiros da economia.

Outro fator a baixar ainda mais a temperatura demográfica é o facto da própria fertilidade estar a diminuir. Especificamente, estudos recentes mostram que a qualidade do esperma dos homens a nível mundial diminuiu para metade nos últimos anos, nomeadamente demonstrando uma redução significativa na concentração de espermatozoides e na motilidade espermática em homens de países desenvolvidos. Da mesma forma, há também evidência de que a reserva ovárica nas mulheres está a diminuir também, o que pode dificultar a conceção, sobretudo quando associada a idades maternas mais avançadas. No seu conjunto, um sistema que deveria procurar ajudar-nos a planear a chegada dos nossos filhos para a melhor altura, ao não investir em políticas de promoção e proteção da parentalidade, está na prática apenas a piorar a situação de fertilidade do nosso país. Os futuros pais e mães do país são empurrados para a parentalidade para idades cada vez tardias, onde a possibilidade de engravidar é cada vez menor, o acesso a tratamentos se torna cada vez mais limitado e onde tais apoios de planeamento são mais restritos o que, na prática, a torna efetivamente na “pior altura”.

Portugal não está imune aos desafios do inverno demográfico. O país enfrenta uma queda na taxa de natalidade e uma população em envelhecimento. Isso é especialmente preocupante num contexto de baixo crescimento económico e altos níveis de emigração de jovens qualificados em busca de oportunidades no exterior. Enfrentar este inverno demográfico requer uma abordagem multifacetada que passa por políticas que apoiem a conciliação entre trabalho e vida familiar, como licença parental remunerada mais flexível e creches acessíveis que podem ajudar a incentivar os casais a terem filhos. Além disso, é necessário voltar a repensar no que significa planeamento familiar, procurando aumentar o investimento em educação e saúde reprodutiva e, consequentemente, a consciencialização sobre questões relacionadas à fertilidade e preservação da fertilidade.

O inverno demográfico representa um dos maiores desafios enfrentados pela sociedade moderna. No entanto, com políticas e programas adequados, é possível enfrentar esse desafio e construir um futuro sustentável para as gerações vindouras. Mas, acima de tudo, é preciso deixar de pensar apenas no planeamento familiar como uma forma de adiar a maternidade e  focar a nossa atenção naquilo que verdadeiramente é o seu intuito: permitir a quem o queira, viver a parentalidade no melhor momento para eles!

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