“Populismo” é a palavra política da moda e a explicação para tudo o que de inesperado tem surgido na res publicae para o imprevisível que provavelmente irá ainda aparecer. Com esse rótulo ambíguo, tudo parece simples e arrumado no lado de cá e no lado de lá do Atlântico. Na dicotomia “populismo vsdemocracia” encerra-se definitivamente qualquer questão e colocam-se “eles” no lugar a que lhes pertence e “nós” no papel ordeiro, responsável, paternalista e regulador que nos compete.
Mas essa conceção mental, que é uma forma simplista de olhar o mundo, revela-se totalmente inapropriada para explicar a realidade que se está a desenrolar diante dos nossos olhos.
Aliás, pôr rótulos nunca foi uma forma de esclarecer a realidade, apenas de a categorizar. E categorizar não significa compreender, mas apenas simplificar ou polarizar a realidade.
Sobre o tão apregoado populismo de Trump, é indispensável procurar alcançar as raízes desse fenómeno, sob pena de não entendermos as transformações que ocorreram nos EUA, e de a eleição deste presidente norte-americano permanecer incompreensível.
Vale a pena atendermos à forma como foram tomadas algumas decisões do poder judicial norte-americano nos tempos do Presidente Obama que, embora aparentassem uma evolução no caminho de maior liberdade, constituíram um retrocesso para a própria democracia, na opinião de quatro juízes do Supremo Tribunal no “fraturante” caso Obergefell v. Hodges. Neste acórdão que atribuiu, em 26 de junho de 2015, o direito à obtenção de licenças de casamento entre casais do mesmo sexo, os juízes John Roberts, Antonin Scalia, Clarence Thomas e Samuel Allito consideraram como ameaça à democracia a atribuição de novos direitos por meras decisões judiciais, sem uma consulta popular ou representativa em cada um dos Estados federados norte-americanos.
Na sua declaração de vencido no caso Obergefell, o Chief Justice John Roberts argumentou que[1], “o direito fundamental a casar não abarca o direito de obrigar os Estados [federados] a mudar a definição de casamento”. E que “a decisão de um Estado de manter o significado de casamento que perdurou em qualquer cultura através de toda a história da humanidade dificilmente se poderá considerar irracional”.Roberts conclui que“a constituição não promulga uma determinada teoria de casamento”, pelo que “os povos de cada Estado [federado] devem ser livres, quer de expandir o conceito de casamento para incluir casais do mesmo sexo, quer de reter a definição histórica.”
Roberts reconhece que os apoiantes do casamento do mesmo sexo tinham obtido, até à publicação do acórdão, um sucesso considerável no processo de persuasão dos seus concidadãos através do legítimo processo democrático. Mas, para Roberts, esse processo democrático “terminou hoje”, porque“cinco juristasencerraram o debatee promulgaram a sua própria visão de casamento como matéria de direito constitucional. Roubar este assunto da decisão da população significa … manchar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, tornando muito mais difícil aceitar essa dramática mudança social.”
Os cinco juízes que aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo “afastaramexpressamente a prudência judicial e omitiram qualquer pretensão de humildade, baseando-se abertamente no seu desejo de refazer a sociedade de acordo com a sua “nova visão”. Em consequência,invalidaram as leis de casamento de mais de metade dos Estados [federados] e ordenaram a modificação de uma instituição social que constituiu a base da sociedade humana durante milénios, desde os Kalahari Bushmen e dos Han chineses, aos cartagineses e aztecas”.
“Just who do we think we are?” pergunta-se Roberts, usando uma linguagem inusitada em acórdãos judiciais.
Compreenda-se bem aquilo que está em jogo: não é se, em discernimento individual, a instituição do casamento deve incluir ou não casais do mesmo sexo. É antes sobre se, na democracia norte-americana, essa decisão não deveria antes ser tomada pela população, em cada um dos Estados federados, em vez de ser tomada por cinco juristas do Supremo Tribunal.
A verdadeira questão, aqui em causa, não é o que é o casamento, mas mais precisamente quem decide o que é o casamento. Segundo Roberts, a constituição norte-americana não deixa dúvidas a esse respeito: são os Estados, e não os juízes, que têm a autoridade necessária para decidir.
Já o JusticeScalia, embora concordasse inteiramente com a opinião de Roberts, decidiu opinar separadamente para sublinhar a ameaça que a decisão do Tribunal Supremo constitui para a democracia americana: “I join THE CHIEF JUSTICE’s opinion in full. I write separately to call attention to this Court’s threat to American democracy”: “É de fulcral importância saber quem pode mandar em mim. O acórdão de hoje diz que o meu dirigente, e o dirigente de 320 milhões de americanos de costa a costa, é uma maioria de juristas do Supremo Tribunal … Esta prática de revisão constitucional por um comité não eleito de nove pessoas, sempre acompanhada (como o foi hoje) por um extravagante louvor à liberdade, rouba o Povo da mais importante liberdade que lhe foi outorgada na Declaração de Independência, e ganha na Revolução de 1776: a Liberdade de se governar a si próprio”.
Continua Scalia:“O que realmente admira são as consequências que implica este “putsch judicial”, na medida em que os cinco juízes maioritários no Supremo Tribunal:
- Não se sentem desconfortáveis ao “concluir que cada Estado violou a Constituição durante 135 anos”;
- Descobriram na Décima-Quarta emenda um “direito fundamental”, não descortinado por nenhuma pessoa viva ao tempo da sua aprovação, e por quase ninguém desde então”;
- Têm a certeza de que o Povo ratificou a Décima-Quarta emenda para lhes atribuir o poder de retirar questões do processo democrático”;
- Assumem que limitar o casamento a um homem e uma mulher é contrário à razão;
- Assumem que a instituição tradicional do casamento entre homem e mulher, que é tão antiga como a noção de governo, e aceite por todas as nações da história até há cerca de 15 anos, apenas pode ser sustentada por ignorância e intolerância; e
- Estão preparados para dizer que qualquer cidadão que com isso não concorde e que adira àquilo que era, até há 15 anos atrás, o julgamento unânime de todas as gerações e sociedades, vai contra a Constituição.
Scalia conclui que a opinião dos juízes maioritáriosé apresentada num estilo tão pretensioso quanto egocêntrico é o seu conteúdo.
Por seu lado, o Justice Thomas sublinhou, entre outros aspetos, que, desde “muito antes de 1787 que a noção de liberdade tem vindo a ser entendida como a possibilidade de oposição face a uma ação do governo, e não a atribuição de quaisquer benefícios pelo governo. Mudar esse conceito de liberdade significa rejeitar a ideia, que consta da Declaração de Independência, de que a dignidade humana é inata, e sugere, ao contrário, que provém do Governo. Oraessa distorção da nossa Constituição não apenas ignora o texto, mas inverte o relacionamento entre o indivíduo e o Estado”.
No mesmo sentido, o Justice Alito concluiu que os cinco juízes maioritários “afastaram o entendimento mais plausível daquilo que é a “liberdade” … e distorceram os princípios nos quais esta Nação foi fundada”.E avisa:“a sua decisão terá consequências incalculáveis para a nossa Constituição e para a nossa sociedade”.
As grandes linhas de pensamento expostas nos argumentos dos juízes do Supremo Tribunal dos EUA que votaram discordante no caso histórico Obergefell v. Hodges desenvolveram-se, como vimos, em torno das definições de democracia e de liberdade, conceitos que consideraram terem sido deturpados através daquilo que um deles qualificou de golpe judicial – judicial putsch – avisando que teria graves consequências para a sociedade norte-americana. Recorde-se que, em 2015, só 11 dos 50 estados federados reconheciam o casamento entre pessoas do mesmo sexo e que a “Proposition 8”, referendada na Califórnia em 2008, tinha resultado numa maioria favorável à exclusividade do casamento heterossexual que levou à introdução de uma emenda na constituição desse estado, segundo a qual “Apenas o matrimonio entre um homem e uma mulher é válido ou reconhecido na Califórnia”.
As eleições presidenciais norte-americanas de 8 de novembro de 2016, cerca de um ano e meio depois, levaram Donald Trump ao poder tornando realidade o aviso do Justice Allito: mexer em temas fraturantes pode ter consequências dramáticas para uma sociedade, abrindo caminho a mudanças políticas totalmente inesperadas.
Não será que a vitoria de Trump em vez do tão apregoado populismo irracional da América profunda, vem justamente de um desejo de reconquistar uma democracia ameaçada?
[1] Os textos em itálico são traduções livres das declarações de voto vencido anexas ao acórdão.