Um jovem português diz-nos que não pede o passaporte para salvar alguém que se esteja a afogar, e eu digo: muito bem. Os seus amigos dizem-nos que não devemos discutir o que ele fez, agora que se trata de lhe salvaguardar os direitos perante os tribunais italianos, e eu digo outra vez: muito bem. Sim, estou de acordo: um náufrago, seja quem for, deve ser salvo, e um cidadão português, faça o que fizer, deve ter a devida assistência quando confrontado com justiças estrangeiras. Peçam-me para acreditar em tudo isso, que eu acredito. Só não me peçam é que aceite que uma história comovente baste para encerrar o debate sobre as migrações ilegais para a Europa.
É louvável estar num barco na costa líbia para impedir migrantes clandestinos de se afogarem; mas é talvez menos louvável que esse barco sirva para os transportar depois para a Europa, facilitando assim o trabalho das redes de tráfico de pessoas. A migração deriva, como é óbvio, do desnível de riqueza e de segurança entre a nossa parte do mundo e as que lhe estão próximas. Mas também é causada pela percepção de que é fácil entrar na Europa e imediatamente remunerador. Só assim tanta gente se dispõe à lotaria de travessias controladas pelo crime organizado. Contribuir para essa percepção é criar ilusões que só servirão para pôr ainda mais gente em risco.
Dir-me-ão: devemos então deixar morrer os migrantes que se perdem no mar? Claro que não. Isso significaria renunciar àquilo que somos e representamos. Mas de outra maneira, o que somos e o que representamos também está em causa quando, violando a lei, os migrantes desembarcam. Não, as coisas não são simples.
A Europa precisa de migrantes. Não apenas porque a sua população não se reproduz, mas porque as nações europeias sempre se reforçaram acolhendo estrangeiros desejosos de viver como se vive nessas nações e até fazer parte delas. A Europa, porém, não precisa de um afluxo descontrolado e caótico de pessoas oriundas de outros continentes. Porque a Europa não é apenas territórios, mercados ou sistemas de segurança social: a Europa consiste em comunidades históricas que dão sentido a esses territórios e que são o fundamento último desses sistemas e desses mercados. Pôr essas comunidades em causa é arriscar tudo, inclusive o que atrai os migrantes para a Europa.
O problema não está apenas nos números, que caíram depois da maré cheia de 2015. Está no facto de nunca as migrações terem incluído tantos grupos que recusam valores consensuais na Europa, como se deduz do alastrar do anti-semitismo protagonizado por migrantes do Médio Oriente. E está ainda na capacidade das sociedades europeias — já divididas por guerras culturais e com economias relativamente estagnadas — integrarem os recém-chegados. Uma entrada maciça e desregrada só poderia resultar em mais guetos e em mais votos “populistas”. Nessas circunstâncias, os migrantes correriam o risco de reproduzir involuntariamente na Europa as situações de que fogem noutros continentes. As pequenas Somálias que agitam alguns subúrbios escandinavos não são necessariamente o futuro, mas dão uma ideia do pior cenário possível.
Toda a gente, aliás, percebe isso, e daí a hipocrisia dos governos europeus, que ao mesmo tempo que salvam as suas faces humanitárias com comovidas palavras sobre os “refugiados”, pagam ao ditador turco Erdogan e às milícias líbias para conter ao longe os ditos refugiados. As fronteiras europeias estão hoje subcontratadas à Turquia e aos senhores da guerra do Norte de África. Quanto à opção de reordenar o resto do mundo com intervenções e ajudas humanitárias, basta pronunciar as palavras Iraque, Líbia, etc. Não, a questão não é mesmo nada simples, e a política das emoções não a torna mais simples.