Lamentavelmente, é uma das frases mais poderosas da política portuguesa — e, mesmo sendo um vazio e uma ficção, apresenta-se como uma evidência irrefutável. Ramalho Eanes já a tinha usado em cartazes, mas foi Mário Soares quem a tornou célebre ao decretar, na noite em que foi eleito, em 1986: “Serei o Presidente de todos os portugueses”.

Era uma afirmação puramente táctica. Naquela altura, o novo Presidente da República precisava rapidamente de ver reconhecida a sua legitimidade. Na primeira volta dessas eleições, Soares tinha derrotado por poucos votos os candidatos da esquerda radical; e, na segunda volta, tinha derrotado por ainda menos votos o candidato da direita. Não por acaso, no dia seguinte, as ruas estavam cheias de eleitores, inconformados com o resultado, que ostentavam orgulhosamente um autocolante com a frase “O meu Presidente é o outro”.

Além disso, que já não era pouco, o novo Presidente da República ia ter que trabalhar com um governo do PSD que ganhara eleições apenas quatro meses antes. Detalhe importante: Aníbal Cavaco Silva chegara a primeiro-ministro depois de ter derrubado, com uma humilhação estrondosa, o governo de Bloco Central liderado precisamente por Mário Soares.

Confrontado com estas dificuldades, Soares precisava urgentemente de enterrar as divergências políticas, assegurando que a “maioria presidencial” que o elegera se dissolvia no minuto a seguir à contagem do último voto. Foi isso que fez naquela noite na praça do Saldanha, em Lisboa, oferecendo-se, generosamente, a “todos os portugueses”.

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Quando se sentiu fortalecido, ao candidatar-se a um segundo mandato, Mário Soares produziu outra frase de efeito, declarando-se “socialista, republicano e laico”. Mas a máxima inicial manteve a sua força, que dura até hoje. Portugueses de direita ou de esquerda, altos ou baixos, magros ou gordos, melancólicos ou festivos, repetem, como se estivessem em oração, que qualquer arrendatário do Palácio de Belém deve ser “o Presidente de todos os portugueses”.

Marcelo Rebelo de Sousa, como sempre, levou essa ideia ao paroxismo. Ele quer ser o Presidente de todos os portugueses, o amigo de todos os portugueses, o pai de todos os portugueses. E, para isso, parece estar disponível para eclipsar todas as suas convicções. Já antecipando que um dia a lei da eutanásia iria aterrar na sua secretária, Marcelo disse há anos numa entrevista que, caso optasse pelo veto político, ele “não seria uma afirmação de posições pessoais”.

Esta garantia provoca uma perplexidade; e essa perplexidade leva a uma pergunta: os Presidentes não são eleitos exatamente para atuarem segundo as suas “posições pessoais”? Durante as campanhas, os candidatos apresentam, explicam e defendem essas “posições pessoais”: acreditam numas coisas e não noutras; defendem estes princípios e não aqueles; prometem fazer isto e evitar aquilo. É com as suas “posições pessoais” que pedem o voto dos portugueses e, como consequência, é olhando para as suas “posições pessoais” que os portugueses lhes dão o seu voto. Alguém me explique: como é que um órgão de soberania unipessoal atua sem “posições pessoais”?

Se é suposto que, depois de contadas as urnas, um Presidente deixe de ter “posições pessoais”, então o regime confronta-se com dois problemas. O primeiro é que, sendo assim, o voto popular transforma-se numa inutilidade: em vez de eleições, podemos ter um sorteio, porque a premissa de que um Chefe de Estado deve agradar a “todos os portugueses”, independentemente daquilo em que acredita e da origem dos votos que recebeu, coloca-o ao nível de um bibelô, papel que pode ser cumprido com garbo por qualquer português com mais de 35 anos cujo nome seja colocado numa tômbola. O segundo problema é que, a ser assim, o nosso sistema político assenta numa fantasia: alguém acredita, por exemplo, que é indiferente ter na Presidência Marcelo ou Ana Gomes, Marisa Matias ou André Ventura, João Ferreira ou Tiago Mayan Gonçalves, porque qualquer um deles será “o Presidente de todos os portugueses” e, como consequência, agirá de uma mesma forma, procurando sempre o mínimo denominador comum da nação?

Seria conveniente, portanto, acabar de uma vez por todas com este mantra pernicioso e enganador. Evidentemente, o Presidente da República não pode ser um revanchista em guerra permanente com um Governo ou um Parlamento de maioria oposta à sua. Mas também não pode ser uma mera extensão desse Governo e desse Parlamento, precisamente porque tem uma legitimidade própria que assenta nas suas “posições pessoais”, que são partilhadas pelos seus eleitores — e esses eleitores foram às urnas para serem representados, não para serem ignorados. Se essas “posições pessoais” se esfumam, e se com elas se esfuma também o pressuposto dos votos que recebeu, então o Presidente deixa de ser um político e passa a ser um aspirante a demiurgo, sempre tentando posicionar-se como o mais puro intérprete daquilo que julga serem os verdeiros sentimentos do povo português em determinado momento.

Aqueles que defendem um “Presidente de todos os portugueses” enganaram-se no regime. Vivem numa república, mas, mesmo sem o saberem, sonham com uma monarquia. É certo que estamos a falar de Marcelo, mas, apesar de tudo, ainda não chegámos lá.