Há horas em que sinto vergonha, outras puro nojo, muitas em que me revolto. A indignação deixo para as redes sociais. Mas já não me consola saber como são tantos e tantos os que lutam todos os dias tantas e tantas horas para que a tragédia que vivemos não seja ainda maior. Eles foram traídos, estão a ser traídos, assim como todos os que não se resignam, todos os que não se rendem à chantagem do “fizemos o que era possível”, “fizemos o nosso melhor”. É mentira, e mesmo que fosse verdade não chegava.

O país, o Governo, falharam, e não falharam em Dezembro, nem sequer começaram a falhar no Verão quando não preparam o Outono e o Inverno: começaram a falhar logo em Março. Por arrogância, cálculo político e falta de visão.

Nunca houve um “milagre português”: houve sorte e medo, um povo que se fechou em casa e um Governo que foi atrás. Criou-se um “gabinete de crise”? Não. O primeiro ministro rodeou-se de uma equipa de cientistas competentes? Não. Em vez disso inventou uma paródia chamada “reuniões do Infarmed”. Mobilizaram-se todos os recursos disponíveis? Não. A ministra da Saúde resistiu meses a fio a conversar com o sector privado, alimentando uma guerra estúpida e desgastante. Criaram-se mecanismos eficazes para informar a população? Não. A preocupação foi sempre a propaganda e mais depressa se escondia informação do que se promovia a transparência. Agiu-se com rapidez para acudir a uma economia obrigada a parar? Não. Todas as comparações internacionais indicam que os apoios que demos à economia e ao emprego se encontram entre os mais exíguos da Europa. Pior: mesmo os programas aprovados não foram cumpridos, acabamos de saber que o ministro das Finanças decidiu “poupar” em vez de ajudar a salvar um tecido empresarial em absoluto colapso.

Mas chega. A lista podia prosseguir, com as excepções e os maus exemplos, a desastrosa gestão dos transportes na Grande Lisboa, os surtos nos lares, os discursos contraditórios e a insuportável prosápia de um poder que não tolera a mínima crítica ou reparo mesmo quando tudo o que faz deve ser objecto de crítica severa.

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O ponto a que chegámos não podia por isso ser mais penoso. O que vemos quando olhamos à volta é desolador.

De norte a sul já se percebeu que o bom português é o “chico esperto” que encontra forma de ludibriar as regras e levar a pica da vacina antes de chegar a sua vez. Um país enxameado de gente que só está onde está porque tem cartão partidário e que fez vida com muitos esquemas e a prestação de muitos “serviços”, naturalmente serviu-se como pôde e não achou isso estranho. “É só um caso cada mil”, diz o responsável pelo processo, Francisco Ramos, no seu tom sempre entre o sonso e o arrogante, o mesmo que até acha que esta “batota” só é imoral para os eleitores de André Ventura. O senhor, um apparatchik que serviu o PS em várias ocasiões – já foi secretário de Estado em cinco governos socialistas – tem feito e refeito o plano de vacinação e por isso é um dos responsáveis por Portugal estar entre os países mais atrasados da UE na primeira dose da vacina. Mesmo assim não se demite.

Aliás a ninguém parece pesar a consciência mesmo quando Portugal está há muitos dias no topo dos países com os piores números de mortes e infectados da Europa, nem quando os mortos se acumulam nos hospitais ao ponto de terem de ser construídas de emergência câmaras frigoríficas para guardar os corpos. O importante é que é essas imagens não apareçam nas televisões, isso sim é que é importante.

Face a este descalabro ainda dizem que estava tudo planeado e até que falar de falta de planeamento é “criminoso”. Que mais posso dizer? Foi já há vários meses que pedi a Marta Temido para deixar de fingir que “fomos exemplares”, que “fizemos o nosso melhor” ou que “o SNS estava preparado”, pois era tempo de deixar de viver na mentira. Como é óbvio não serviu de nada. Entrámos nessa ficção por Novembro adentro, depois por Dezembro adentro, já sabíamos da variante britânica quando deixámos as fronteiras abertas para o Natal enquanto outros as fechavam e depois, quando à nossa frente já se avistava o tsunami, o nosso primeiro-ministro, fleumaticamente, anunciava que tínhamos de esperar pela “reunião do Infarmed”, e a seguir à “reunião do Infarmed” anunciava que não havia consenso entre os especialistas sobre fechar ou não fechar as escolas.

Porque não te calas, Marta Temido?

Pois, falo mesmo do nosso primeiro ministro. Do “hábil” António Costa, agora o desnorteado António Costa. Cada semana que passa torna mais evidente que não é homem para as horas complicadas em que é preciso tomas decisões difíceis e impopulares. E rápidas. Entre duas opiniões contraditórias, hesita e adia, negoceia, procura o consenso, tira a bissetriz, sem entender que as meias-tintas raramente são a boa solução.

Rodeado por uma equipa ministerial de pesos-pluma, quase não tem em quem confiar. Mas também não é capaz de cortar a direito e remodelar um governo que não está à altura das circunstâncias — faz retoques na pintura promovendo gente dos gabinetes sem experiência de vida. Tudo em circuito fechado.

Como é possível manter ainda em funções o ministro da Educação depois de dizer que ele não disse o que ele tinha dito, e o próprio se ter vindo desdizer? Como é possível segurar a ministra da Solidariedade Social depois da hecatombe que tem acontecido nos lares e depois de tudo o que continua a não funcionar nos apoios sociais? Será que ainda não reparou que o pronto-socorro do ministro da Economia não chega para tudo? E que dizer da ministra da Justiça, irremediavelmente comprometida depois do caso do procurador europeu, mas que é apenas mais um caso a manchar um mandato onde a única preocupação parece ser assegurar que, da área da Justiça, não virão mais surpresas desagradáveis para os socialistas e os poderosos?

Isto sem esquecer, claro, o velho companheiro Eduardo Cabrita, amigo fiel de muitos anos, agora na Administração Interna e que pode ser um bom cão-de-fila para umas arengas parlamentares, mas que desde o caso Ihor Homeniuk perdeu autoridade para o que quer que seja. Sobra-lhe no tom da voz o que lhe falta da substância da razão, e isso é poucochinho.

Imagino que olhando de Belém para este cataclismo Marcelo comece a estar assustado. A verdade é que se comprometeu demasiado com o Governo, assumiu-se como parte nas decisões sobre a gestão da pandemia, imaginamos que terá evitado alguns erros, vimos como tento apagar alguns fogos, testemunhámos como foi parceiro em boa parte dos equívocos, dos erros de cálculo e na mistificação pública. Gostei por isso de vê-lo “muito irritado” quando não conseguiu que a DGS lhe desse uma instrução por escrito sobre o que devia fazer quando testou positivo e logo a seguir negativo – finalmente descia ao mundo do comum dos mortais que têm de viver no meio da confusão que é lidar com as informações contraditórias que se recebem dos serviços de saúde.

Só que Marcelo tem de decidir-se. A pandemia é a catástrofe que ninguém previu, mas a degradação das instituições e dos costumes já vinha de trás e o Presidente fora cúmplice nesse processo degenerativo, uma cedência aqui, um cálculo de oportunidade acolá, mas cúmplice sem margem para dúvidas.

Agora, forte com os 60% da sua reeleição, tem força para correr riscos políticos, tem força para tentar despertar os portugueses, tem força para em vez de perseguir ainda mais selfies, colocar o dedo nas feridas e abalar consciências. É o mínimo.

É que convém não ter ilusões. Talvez o número de infectados e de mortes comece a diminuir mais depressa do que preveem os modeladores, que de resto se enganam sempre, mas quando isso acontecer o que ficará para trás é um campo de ruínas. Na saúde e na economia. E quem continuará em São Bento é esta equipa de zombies arrogantes e claramente incompetentes que até é capaz de vir reclamar os louros por ter “vencido a pandemia”. Isto enquanto, com a mesma sofreguidão com que se lançou às vacinas, a turba multa prepara as garras para agarrar a bazuca.

Porque escrevo isto? Porque pelo que temos visto o crime compensa. Tem compensado, está à vista de todos, descaradamente.

Prof. Marcelo: por uma vez na vida, vai fazer alguma coisa para que deixe de compensar?