1. O Partido Socialista (PS) tem um problema com a Justiça — ou melhor, tem um problema com o Ministério Público (MP). Não com a conceção do que deve ser o Poder Judicial numa Democracia. Mas sim com a ação do MP.

Poder-se-á dizer que tudo começou nos anos 90 com o caso Fax de Macau ou com o caso Emaudio. Ou com o caso Casa Pia. Ou com a prisão preventiva de José Sócrates. Ou com mais alguns casos. O problema, contudo, é um pouco mais profundo.

Recuemos brevemente ao período de 1974/75. A construção de uma Constituição que implementasse a base da nossa democracia representativa muito deve ao PS de Mário Soares e ao PPD de Sá Carneiro (e de outros) mas é curioso que começaram por divergir em algumas matérias fundamentais para qualquer Estado Democrático, como a Justiça. Mais concretamente sobre o papel do MP. O PS e o PPD defenderam na Assembleia Constituinte a existência de tribunais independentes mas, por razões compreensíveis, os constituintes olhavam com grande desconfiança para os juízes e para os procuradores. O poder judicial tinha sido um grande aliado da Ditadura e o PS e os partidos à sua esquerda (onde estavam muitos antigos presos políticos) não queriam dar demasiado poder a um Judiciário que tinha servido e adubado o Estado Novo.

Resumindo a história. O PS ignorou o MP no seu projeto de Constituição porque queria estabelecer em lei ordinária uma nova organização inspirada na lei francesa que, desde 1790, subordina o MP ao Poder Executivo. Enquanto que o PPD de Sá Carneiro (que, enquanto advogado, se batia desde 1972 pela independência e o auto-governo das magistraturas) defendia a inscrição constitucional da autonomia do MP face ao Poder Executivo. Ganhou parcialmente o PPD mas a palavra “autonomia” não ficou na Constituição de 1976.

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Dois anos depois chegou a batalha da lei orgânica do MP e aí o PS mudou de ideias. Ou melhor, influenciado por Barbosa de Melo (PPD) e Cunha Rodrigues (então adjunto do procurador-geral da República bastante activo na defesa da autonomia do MP), António Almeida Santos (ministro da Justiça) derrotou a ala do PS que queria um MP à francesa, tendo ficado devidamente inscrito na lei a “autonomia” dos procuradores “em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local”. “Autonomia” do MP essa que apenas foi inscrita em 1989 na Constituição.

Um certo PS jacobino e maçónico, contudo, nunca desistiu verdadeiramente de tentar controlar o mais possível a Justiça, em particular, o MP como titular da ação penal e, consequentemente, um contra-freio aos desvios do poder político.

2. Se analisarmos o passado recente na relação do PS com a Justiça vemos precisamente isso. Começou com as investigações do casos Fax de Macau e Emaudio da primeira metade dos anos 90 aos homens de confiança de Mário Soares, então Presidente da República. E continuou em 2003 com o caso Casa Pia e a detenção de Paulo Pedroso, então braço-direito do secretário-geral Ferro Rodrigues.

Em ambos os casos, e independentemente de todos visados terem sido absolvidos em diferentes períodos e circunstâncias diferentes, há um traço comum na reação dos socialistas. Uma certa ideia de que a Justiça (como a comunicação social ou muitos outros sectores da democracia portuguesa) devem algo ao PS de Mário Soares e a certeza de que “quem se mete com os socialistas, leva!”

Daí o procurador-geral José Souto Moura ter sido ‘despedido’ por José Sócrates, de este ter declarado guerra às magistraturas logo no dia da sua tomada de posse e de o Código Penal e o Código do Processo Penal terem sido alterados pelo PS à boleia do caso Casa Pia.

3. Vem tudo isto a propósito da recondução ou  substituição de Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República.

Em primeiro lugar, a recondução de Marques Vidal é uma questão eminentemente política. Isto porque, como já muitos juristas afirmaram de forma praticamente unânime, nada na lei obriga Joana Marques Vidal a sair. O mandato único (por causa dos 16 anos de Cunha Rodrigues como PGR) até pode ter estado no espírito dos legisladores, mas tal bonito sentimento não foi passado para o texto da lei. Logo, Costa pode propôr, se quiser, a recondução ao Presidente Marcelo.

Por outro lado, o balanço do trabalho de Marques Vidal é claramente positivo. Discreta, moderada, profissional e independente, o maior elogio que se lhe pode fazer tem a ver com o facto de ter sido uma PGR que deu autonomia aos seus principais departamentos, nomeadamente ao DCIAP, para atuarem em conformidade no tempo e termos legais que entendessem. Foi precisamente o exercício dessa autonomia que permitiu ao MP construir a ideia de que a impunidade chegou ao fim.

Portanto, não há nenhuma razão para substituir a PGR. Tal como o CDS, PCP e Bloco de Esquerda, aliás, já defenderam

Daí a pergunta: será que os socialistas, como aconteceu com o caso Casa Pia, estão noutra revanche a propósito da detenção e da acusação produzida contra o ex-primeiro-ministro José Sócrates? Para Soares, por exemplo, não era politicamente admissível que a Justiça pudesse prender um ex-primeiro-ministro — muito menos um do PS.

Do ponto de vista do controlo do poder judicial por parte do poder político, sempre desejado por aqueles que queriam um MP à francesa, tudo se sintetiza nesta questão: proteger os ‘nossos’ — ou defender o país?

É porque se a Justiça chegou ao outrora todo-o-poderoso José Sócrates, isso significa que poderão chegar a outros socialistas igualmente influentes. De facto, uma parte do PS não perdoará a António Costa caso não tente, pelo menos, influenciar o MP com um novo procurador-geral de ‘confiança’.

4. Obviamente que a saída de Joana Marques Vidal — o cenário mais provável neste momento, atendendo aos sinais que o Governo e o PS têm vindo a dar — não significará o princípio do fim de um MP verdadeiramente autónomo nem as investigações criminais a poderosos cessarão. É importante referir isso para estancar um pouco a dramatização do tema.

O sucesso que o MP tem vindo a ter na fase de inquérito de muitos casos recentes explica-se por três razões essenciais:

  • É o resultado de uma aposta estrutural feita nos anos 90 pelo procurador-geral Cunha Rodrigues na especialização do MP. Criou-se o DIAP de Lisboa e do Porto com secções especializadas no combate a determinados crimes e, assim, os procuradores foram desenvolvendo um know-how único, o que permitiu uma investigação mais eficiente e célere. A evolução do combate à corrupção nos últimos 20 anos é um reflexo disso mesmo;
  • A nomeação de Amadeu Guerra para diretor do DCIAP, por um lado, permitiu dotar o departamento de eficiência e organização que nunca teve desde 1999 ano em que foi criado por Cunha Rodrigues como uma espécie de herança. Joana Marques Vidal, por outro lado, acabou com a concorrência que sempre existiu entre o DCIAP e o DIAP de Lisboa, o que permitiu ao primeiro departamento cumprir a função para o qual foi criado: investigar os casos de criminalidade económico-financeiro mais complexos com uma elite dos melhores procuradores do país.
  • E, finalmente, a chegada ao DCIAP de procuradores da República de uma geração que nasceu na altura do 25 de abril, que não viveu a Ditadura nem foi politizada durante a Revolução. É precisamente esta geração dos 40 anos que não deixará que um eventual substituto de Marques Vidal promova um retrocesso na autonomia conquistada pelo MP. O mesmo se diga da geração de 30 anos que já está ser formada no DIAP de Lisboa com a mesma mentalidade.

Ou seja, há uma parte do PS (ao qual podemos juntar Rui Rio) que ainda não percebeu que o tempo dos PGR ‘de confiança’ já passou.

5. O que está aqui em causa, portanto, é o sinal que o primeiro-ministro António Costa dará à comunidade caso não propunha a recondução de Joana Marques Vidal ao Presidente Marcelo. Ou caso o Chefe de Estado não defenda a continuidade da actual PGR.

E aqui não há qualquer dúvida: a saída de Marques Vidal por decisão do poder político representará uma mensagem simbólica de que não vale a pena fazer um bom trabalho, ser competente e dar esperança a uma comunidade farta de uma Justiça com dois pesos e duas medidas. Mais importante do que isso: que não vale a investigar sem olhar a cores políticas ou futebolísticas nem ao poder financeiro e social dos suspeitos.

Dito de outra forma: os vencedores chamar-se-ão José Sócrates, Ricardo Salgado, Oliveira Costa, Armando Vara, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, Duarte Lima, Isaltino Morais, Luís Filipe Vieira, Jorge Nuno Pinto da Costa ou Manuel Vicente — e todos os chefes de Estado estrangeiros que pensam que podem influenciar a Justiça via poder político. Os vencedores serão aqueles que andaram nos últimos seis anos a fazer tudo para se manter o tempo da impunidade.

Lá está, a mesma pergunta para António Costa: proteger os ‘nossos’ ou defender o país? Qual é o seu lado, sr. primeiro-ministro? A resposta parece-me fácil.