Quando iniciei a minha análise pessoal, e a minha formação para psicanalista, o mundo era muito diferente. A internet era um universo só acessível a muito poucos, os telemóveis tinham acabado de aparecer e não se falava ainda em redes sociais. Estávamos no início da década de 1990. A informação era divulgada pela rádio, pelos jornais ou pela televisão e o estudo aprofundado fazia-se em bibliotecas. Nós, estudantes, muníamo-nos de fotocópias e sebentas, o mais que podíamos. Os livros eram caros. Ainda são.

Não sei se o mundo era melhor ou pior. Acho que era pior. É uma ilusão pensarmos que uma sociedade com pressa é uma invenção de agora. Não é. Naquela altura já era assim.

Quando optei pela psicanálise em vez de outra psicoterapia, sabia, de alguma forma que estava a escolher o caminho mais longo, mas preferi não ter pressa. Queria saber de mim e queria que isso acontecesse com a ajuda de outra pessoa. De resto, quando comecei a minha análise pessoal já tinha pensado tanto sobre mim que não tinha dúvidas de que o que haveria a saber não era, seguramente, apenas pelo pensamento. Era, soube-o depois, pela experiência. Pela experiência de me revelar numa relação. Uma relação terapêutica com o meu psicanalista. Por isso é que a psicanálise não é um processo rápido. Ela depende do estabelecimento de uma relação. Porque o que há a curar surge no contexto dessa relação, o que já sabemos e o que ainda não sabíamos que existia em nós. Aproveito para deixar aqui uma pequena homenagem ao meu primeiro analista, José Carlos Coelho Rosa, recentemente falecido e de quem já temos uma saudade imensa.

Antes de iniciarmos o processo, sabemos algumas coisas de nós. Sabemos das nossas dores, das nossas angústias, dos nossos sintomas, das nossas inquietações. E a análise começa exatamente aí: na ideia que temos sobre nós, mesmo que depois, ao longo do processo, venhamos a perceber que não era bem assim. Quem tinha ideias de perfeição sobre si próprio, perde-as, não há como não ser assim. Dói. Ao princípio dói. Mas cura, liberta e faz-nos ser mais quem somos. O caminho nem sempre é fácil. O prémio é termos uma vida cada vez mais autêntica.

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Outra coisa que se perde é a ilusão de que precisamos mesmo disto ou daquilo para sermos mais felizes: bens materiais, sabedoria, “uma relação amorosa”… tudo mentira. Nada disso nos faz mais felizes. Com o tempo percebemos que a felicidade é um ideal. Inatingível, como todos os ideais, embora não possamos desistir deles. A custo de lutos, próprios ao amadurecimento, vamos aprendendo a aceitar a realidade e a perceber que quase tudo o que precisamos está em nós mesmos. Precisamos irremediavelmente de cumprir o que somos. Sem isso não podemos viver nem morrer.

Em grande parte, a tarefa do psicanalista passa por ajudar as pessoas a serem capazes de se desiludirem. Paradoxal, não é? Alguém que para ajudar tem que deixar que a dor aconteça… Sim. Essa é uma das enormes diferenças entre a psicanálise e qualquer outra psicoterapia. É que a psicanálise não tem solução para a dor humana, a psicanálise não cura sintomas. Ela ajuda o humano a ser mais humano. E normalmente isso faz com que os sintomas desapareçam. Outro paradoxo: nós, psicanalistas, que não estamos especialmente interessados em sintomas, mas acabamos por observar, ao longo do processo, que eles desaparecem, quase que por magia. A psicanálise enche-nos de nós, e com isso, ficamos muito mais capazes de dar de nós. Por isso, quem beneficia com o processo, não é só a pessoa analisada, mas também as pessoas que com ela convivem.

Quando entrei neste mundo havia apenas uma psicanálise, a clássica, freudiana, ainda que com os seus derivados. Essa psicanálise estava direcionada ao profundo, a indivíduos já constituídos como pessoas maduras. Hoje a psicanálise é muito mais do que isso. Hoje a psicanálise, nomeadamente a psicanálise winnicottiana, abrange também as pessoas que ainda não encontraram um sentido de existência. Para estas pessoas, é preciso uma psicanálise viva que favoreça o pulsar da experiência.

O que é que é mais parecido com a psicanálise? A liberdade, diria eu. O processo analítico é profundamente revolucionário. Outras vezes, é fundador da própria pessoa e não há nada de mais revolucionário do que isso…

Eu formei-me, como todos os psicanalistas da minha há altura, na escola clássica, freudiana. Mas desde cedo que me interessei pelas ideias originais de Donald Winnicott (1896-1971), o britânico que revolucionou a psicanálise como era conhecida e alargou muitíssimo o âmbito de intervenção. Na altura estudei-o de forma absolutamente autodidata, mas depois descobri o Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana, em São Paulo, onde fiz a especialização. Trouxe-a para Portugal e, em conjunto com outros colegas, fundei em 2023 a Associação Winnicottiana Portuguesa.

Nos próximos dias 17 e 18 de Maio, em Lisboa, irão decorrer as nossas segundas Jornadas Clínicas, onde serão discutidos vários aspetos da clínica e da teoria. Nós, psicanalistas, precisamos muito destes momentos de encontro, trocas mútuas e aprendizagem. São os momentos em que partilhamos uns com os outros as nossas últimas descobertas e reflexões. É realmente um privilégio fazermos o que somos. Mais do que fazermos o que gostamos, sermos inteiros naquilo que somos e naquilo que fazemos. A psicanálise é uma paixão. É a única ciência que é também uma arte.

Maria do Rosário Belo, psicóloga desde 1995, é psicanalista e presidente da Associação Winnicottiana Portuguesa. É autora de vários artigos científicos e de O Percurso de um Psicanalista e Estudos Winnicottianos, ambos editados pela Climepsi em 2023.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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