Hoje escrevo de coração trespassado de angústia e assumo abertamente o estado em que escrevo. Estamos a três dias de um acontecimento que pode ser fatal: o Eduardo Jorge, Assistente Social que ficou tetraplégico em 1991 e é conhecido do público em geral – e dos políticos em particular! – por chamadas de atenção radicais sobre as condições de dependência e isolamento extremos em que vive uma elevada percentagem de pessoas com deficiência, volta ao seu ativismo para se enfiar numa espécie de gaiola em frente da Assembleia da República, como forma de protesto e de alerta para a realidade-real de sofrimento dos que dependem dos outros para quase tudo, mas não têm condições para garantirem estes mesmos apoios vitais.

No dia 1 de Dezembro, às 14h, o Eduardo pretende ser colocado numa cama articulada ao ar livre, onde quer permanecer até dia 4, às 9h da manhã. Eduardo propõe-se passar 3 dias e 3 noites ao relento, sozinho nesta espécie de jaula, aprisionado no seu próprio corpo, sem ter como se alimentar, como se virar na cama, como cuidar da sua higiene, como cobrir-se para resistir ao frio e à chuva. Tudo isto se o PM, o PR e o ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social não aceitarem o desafio de serem eles próprios a alimentá-lo, a cuidar da sua higiene e do seu conforto, a virá-lo na cama e a olhar pelas suas necessidades essenciais, pois esse foi o desafio que lançou a António Costa, a Marcelo Rebelo de Sousa e a José António Vieira da Silva.

A estrutura desta gaiola pouco melhor é que a de uma vulgar capoeira de quintal, apenas tapada por um plástico que, como é evidente, não resistirá a ventos e chuvas. Muito menos o protegerá do frio da noite e das diferenças de temperatura dos dias, nesta amplitude térmica de Outono frio. Eduardo sabe muito bem o que faz e o que quer. Não é maluco, nem quer que o sigam. Muito pelo contrário, quer estar sozinho e poder fazer ali a sua catarse de todas as mágoas, dores, tormentos, sufocos e humilhações que tem vivido desde o dia em que teve um acidente de carro que o deixou tetraplégico e dependente para o resto da vida.

Muitos estão ‘habituados’ a olhar para Eduardo e a ver nele ‘apenas’ um revoltado, um radical, um extremista nas posições que adota. Estes, os que já se ‘habituaram’, ficam razoavelmente indiferentes aos seus gritos e preferem catalogá-lo como ativista excêntrico. É fácil cultivar a indiferença, basta colocar um ou dois rótulos, arrumar a pessoa e a questão, seguindo em frente de consciência aliviada e porventura tranquila. É muito tentador, aliás, pois o sofrimento dos outros desperta em nós uma certa repugnância e, por vezes, até alguma impaciência.

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Não concordo com esta ação de Eduardo Jorge, mas sei que não me cabe concordar nem discordar. Apenas respeitar. Fui uma das muitas pessoas que o tentaram compreender e demover, argumentando que pode morrer ao fim de poucas horas, seja de hipotermia, de fome, de desidratação, por hemorragias ou outros acidentes previsíveis e imprevisíveis. Sabe tudo isto e ouviu-me também a mim, mas nada o fez travar a sua ação. Muito menos alterar a sua convicção. Mantém-se firme no seu propósito de dar uma derradeira oportunidade aos políticos-decisores, mas também a si próprio.

Se morrer pela causa, sabe que ninguém será indiferente à sua morte e esse pode ser o seu legado. Sabe isso e entrega-se por isso.

Num país e num contexto político em que tudo é uma causa fraturante, em que ninguém pode ser deixado à margem, posto de parte, ignorado ou impedido de ser quem é, parece impossível que as pessoas com deficiência sejam a única exceção do fervor apologético das causas e das minorias. Cães e gatos são ultraprotegidos, gordos e magros também, homens e mulheres de todas as categorias sexuais possíveis e impossíveis, mais os que reivindicam a liberdade de fazerem o que quiserem com o seu corpo e o seu género, todos são superimportantes para os partidos que elegeram certas minorias como causa, mas ninguém quer saber das pessoas com deficiência, especialmente dos mais dependentes e mais excluídos de todos. Dos que são vítimas em toda a linha, pois a sua condição não depende de uma vontade, inclinação, pulsão ou compulsão suas.

Dito isto, o que faz correr este homem mesmo sabendo que pode embater em muros altos e, aparentemente, intransponíveis? Sempre o mesmo. O que o fez percorrer quase 200kms na sua cadeira de rodas em 2014, e precisamente o mesmo que o fez iniciar uma greve de fome em 2013: protestar contra a falta de dignidade de todas as pessoas com deficiência como ele, deficientes e dependentes de terceiros para tudo, que continuam sem direito ao apoio de assistentes pessoais que lhes permitam uma vida independente.

No seu blogue, “Nós, Tetraplégicos”, Eduardo escreveu: “Em maio do ano passado, e após divulgação pelo Governo da proposta de “Modelo de Apoio à Vida Independente/Assistência Pessoal”, que muito me dececionou, desafiei o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o nosso primeiro ministro, António Costa, e ainda o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva a serem os meus assistentes pessoais durante 4 dias, comigo deitado numa cama em frente à Assembleia da República, para desse modo conhecerem as nossas reais necessidades, e verificarem a importância desta medida de apoio nas nossas vidas, e legislarem com conhecimento. Anulei essa iniciativa, porque foram feitas algumas das alterações solicitadas no modelo de Vida Independente, e tudo parecia estar no bom caminho para que o projeto iniciasse em breve”.

Acontece que passaram 18 meses e “a prometida Vida Independente, criada pelo Decreto Lei nº 129/2017, de 9 de outubro, continua a não sair do papel, e eu, e muitas outras pessoas com deficiência continuamos presos em lares de idosos, e em nossas casas, contra a nossa vontade”.

Este é o ponto central do protesto de Eduardo: ser obrigado a viver ‘preso’ num lar de idosos, quando aquilo que ele mais preza é poder viver em sua casa. Eduardo faz questão de agradecer publicamente ao lar onde vive e trabalha, como Diretor Técnico da Valência do Centro de Dia, bem como a todos os que no lar o acolheram e acolhem diariamente, tornando a sua vida possível, mas esta é uma situação recente, que decorreu do seu anterior protesto, quando fez 180kms em cadeira de rodas. O problema é que, mesmo correndo o risco de parecer ingrato ou ser mal interpretado, Eduardo não desiste de lutar para que outros não passem o que ele passou até ser resgatado pelos responsáveis do lar.

No passado, antes de morar neste lar, Eduardo viveu episódios chocantes que dificilmente esquecerá e têm obrigatoriamente que nos chocar também, por se repetirem com frequência com outras pessoas com deficiência desprovidas de ajudas. Certo dia foi deixado de barriga para baixo durante mais de 10h seguidas, por não ter quem lhe desse assistência, e teve uma grande hemorragia. Quando foi socorrido tinha uma enorme centopeia a passear na ferida. Pior do que estar a ser comido vivo por vermes é sabermos que as feridas e escaras de pessoas que vivem acamadas ou em cadeira de rodas são um tormento por demorarem meses a sarar. Como se fosse pouco, Eduardo viveu um outro episódio apavorante, mais uma vez quando estava na terrível posição de barriga para baixo (incómoda e dolorosa, mas muitas vezes a única opção para evitar as tais escaras, sobretudo quando os doentes vão ser deixados à sua sorte durante muitas horas seguidas): era verão, estava muito calor e um formigueiro invadiu a sua cama, comendo literalmente a pele dos seus calcanhares e da parte inferior das pernas.

Podia ficar aqui a enunciar momentos trágicos, desumanos, mas poupo a leitura arrepiante de tais vivências. Quem conhece bem a realidade das pessoas com deficiência, as suas necessidades básicas e os imperativos de cada hora do dia e da noite, sabe do que falo, pois basta não haver ninguém para cuidar deles para acontecerem estas coisas e outras ainda piores e igualmente chocantes!

“A realidade da vida das pessoas com deficiência, dependentes de outros, como eu, é desconhecida da generalidade das pessoas, assim como as nossas necessidades são normalmente esquecidas por quem tem o poder de legislar e decidir sobre as nossas vidas (…) como pouco ou nada foi feito até ao momento para efetivar a Assistência Pessoal, resolvi levar esta ação avante, mais uma vez estarei dependente dos cuidados dos referidos governantes durante os dias: 01, 02, 03 e 04 de Dezembro de 2018, numa cama, dentro de uma gaiola. Dia 3 de Dezembro é comemorado o dia internacional da pessoa com deficiência, dia em que os nossos governantes se desdobram em ações de comemoração por todo o país. No entanto, nós, pessoas com deficiência, pouco temos para comemorar pois os discursos não combinam com a realidade. No meu caso, vou comemorar da maneira mais real, mostrando como é estar dependente de terceiros. Mesmo estando ciente que será mais um dia de sofrimento.

Ao colocar-me aos cuidados dos nossos governantes, dou-lhes a oportunidade de conhecerem as reais necessidades de uma pessoa com deficiência, dependente de terceiros. Terão a oportunidade de verificar através do meu exemplo que não são poucas as necessidades, que terão de assegurar, como a minha higiene, alimentação, posicionamento na cama, transferência da cama para a cadeira, etc. Caso não aceitem o meu pedido, ficarei abandonado, pois não permitirei que outros realizem tais tarefas.

Se aceitarem este meu desafio conseguirão entender a importância da Vida Independente nas nossas vidas. Verificarão o quanto somos inúteis sem apoio de um assistente pessoal, e desse modo tentar sensibilizá-los para a urgência de o projeto se tornar uma realidade o mais rápido possível como prometido”.

Caso os políticos recusem, Eduardo adverte que não aceitará assistência de outras pessoas e ficará entregue a si mesmo (ler: completamente abandonado, à espera da morte), sem poder alimentar-se, sair, virar-se na cama, cuidar da sua higiene, entre outras necessidades.

Todo o sofrimento excessivo choca e repugna, seja o dos que são vítimas de acidentes e doenças, seja os que são vítimas do sistema, ou o dos que se auto impõem novos flagelos. Esta ação de Eduardo Jorge angustia pelo desfecho certo, se ninguém lhe der a certeza de ser ouvido e tido em conta. Podemos concordar ou discordar desta forma de ativismo, deste tipo de imolação pública, mas não podemos ficar indiferentes às motivações de alguém que dá a sua vida para que outros possam ter uma vida melhor.

À hora em que escrevo sinto-me vencida pela força da vontade de Eduardo Jorge e digo-o com angústia, mas estou absolutamente convencida de que que se trata de puro desespero, senhor primeiro ministro.