Há dois dias, a Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) informou o país sobre a sua posição acerca da vacinação de crianças a partir dos 5 anos. Em resumo, a SPP considera que as crianças não estão em risco, mas também que a vacina é segura e, como tal, justifica-se a sua administração para prevenir medidas de contenção, como confinamentos, que impõem vários prejuízos às crianças. Ora, não é necessário ser pediatra ou epidemiologista para identificar os desequilíbrios desta tomada de posição — basta apenas um pouco de bom-senso.

Em primeiro lugar, a SPP precipitou-se: emitiu uma posição pública sobre a vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos sem que antes se conhecesse a decisão da EMA (a Agência Europeia de Medicamentos) sobre a questão. Bastaria ter aguardado 48 horas — e é difícil compreender qual foi o sentido de urgência que levou a SPP a pronunciar-se antes. Como já foi explicado por epidemiologistas e membros da Comissão Técnica de Vacinação, o ponto não é apenas o de saber se a EMA considera a vacina eficaz e segura, mas sobretudo o de conhecer a sua avaliação sobre a vacinação nesta faixa etária. Por exemplo, se as eventuais orientações irão variar em função da taxa de vacinação da população adulta — porque isso, numa perspectiva de saúde pública, influencia a apreciação do benefício de vacinar crianças. Ou, noutro exemplo, se as recomendações serão universais ou direccionadas às crianças com comorbilidades. Recorde-se que vários pediatras têm assinalado a falta de dados sobre os efeitos nas crianças, na medida em que as amostras dos estudos são ainda pequenas, como um desafio a ter em conta: o grau de incerteza permanece relevante e impede juízos absolutos. Por isso, a SPP tomou posição de forma imprudente, antes de ter a informação mais completa possível.

Em segundo lugar, a SPP não determina a sua posição numa avaliação de riscos e benefícios directos da vacina para a saúde das crianças — o que se perceberia se fossem decisores políticos (que devem olhar a múltiplos factores), mas que tem algo de anómalo vindo de pediatras. Uma vacina ser eficaz não significa que a sua administração esteja isenta de riscos. Todas as vacinas têm algum grau de risco e, no caso de vacinas autorizadas para uso de emergência (como foram as vacinas contra a Covid-19), o conhecimento sobre esse risco é mais limitado. Acresce que essa ponderação sobre riscos e benefícios para as crianças é particularmente exigente: como aliás a própria SPP reconhece, quando infectadas com Covid-19, as crianças apresentam esmagadoramente sintomas ligeiros ou são assintomáticas, pelo que os benefícios da vacinação são mais baixos do que na população adulta (e, como tal, a nível individual de cada criança, os riscos existentes poderão justificar posições cautelosas).

Em terceiro lugar, e talvez o ponto mais grave de todos, a SPP formula a sua recomendação de vacinação de crianças entre os 5 e os 11 anos com vista à protecção, não contra a Covid-19, mas contra medidas políticas (como confinamentos) que prejudicam a saúde, o desenvolvimento e o bem-estar das crianças. Ou seja, os pediatras recomendam um acto médico (a vacinação) para proteger as crianças de decisões políticas (confinamentos). Esta posição da SPP choca pela sua enorme incoerência e falha ética. Incoerência, porque seria suficiente assinalar que, em Portugal, com uma população adulta quase integralmente vacinada (ao contrário de outros países), os confinamentos deixaram de ser uma medida aceitável, tendo em conta as consequências sociais e de saúde que impõem. Falha ética, porque os próprios pediatras olham para a vacinação de crianças de forma instrumental, para moldar os comportamentos dos adultos — ou seja, neste racional da SPP, as crianças a serem vacinadas não são, portanto, os sujeitos no centro da decisão que sobre elas é imposta.

Não me interpretem mal: não tenho nada contra a SPP. Aliás, mais do que a SPP em particular, o meu ponto é este: a pandemia dura há quase dois anos e, no entanto, continua a ser difícil perceber-se em quem realmente confiar. Como já se tornou hábito dizer, a pandemia atribuiu à Ciência um justificado protagonismo de primeiro nível. Mas, por isso, também elevou a responsabilidade dos agentes e das comunidades científicas aquando das suas posições públicas. Infelizmente, estes e estas demasiadas vezes não têm estado à altura das circunstâncias, cedendo a precipitações, evitando os debates éticos mais difíceis e abdicando de nos orientar pelas evidências científicas. O bom-senso está cada vez mais escasso.

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